Talentos

Numa roça de Minas

Numa roça de Minas

Houve um tempo em que a vida era muito simples. Com a evolução tecnológica houve uma revolução nos últimos quarenta anos principalmente, mas que os humanos não acompanhamos na mesma proporção. Ainda somos muito fechados em nós mesmos. A própria evolução a que me refiro acaba por nos dar uma sacudida, insuficiente para nos colocar num nível mais elevado como pessoas, no entanto.
O que vou contar agora aconteceu num lugar tão isolado hoje do mundo que parece mesmo um sonho.
Minha família que se retirou pra São Gotardo quando o sustento pelo cultivo da terra já não era bastante conheceu uma realidade mais dura e a miséria nos acompanhou por anos a fio. Não obstante, o pai teve a grata iniciativa de fazer estudar seus filhos, o que a longo prazo teve um impacto satisfatório.
A fazenda da avó, de onde se retiraram e que era mesmo o paraíso, continuava sendo o lugar preferido das crianças que nem notavam a miséria em que estavam.
Numa época em que não havia violência como a que grassou pelo mundo nas últimas décadas, as crianças viajavam os cerca de quarenta quilômetros entre a cidade e a roça em carona com motoristas de caminhão. Outrora usavam a antiga estrada, melhor acesso à Capital antes do advento do asfalto que, alterando a rota para os principais pontos, acabou por transformar a região num lugar quase desabitado e improdutivo.
Naqueles tempos idos se chegava à roça depois de caminhar cerca de uma légua, desde o desembarque na estrada, nos Campos e seguindo pela estradinha secundária, esburacada e pela qual poucos veículos seguiam. Esse caminhar em si já era uma grande aventura, posto que se podiam avistar as plantações de café descendo e subindo as vertentes do fim da Serra da Saudade e as curiosas formações de solos coloridos, siltitos glauconíticos, variação de verdete que jamais vi em outros lugares por que passei. Sabe-se que a região é de boa cultura, uma vez que esse tipo de rocha é utilizado mesmo como fertilizante. Diz a sabedoria popular que a ocorrência de macaúbas é também indício de terras produtivas e esse tipo de palmeira abunda por aquelas bandas.
E havia trilha sonora proporcionada por um sem número de grilos e, no verão, as cigarras eram as donas do espetáculo. Ainda que esses sons não sejam incomuns, o ambiente os tornava mais que especiais. Realmente aquilo era o paraíso.
O ponto culminante da caminhada, entretanto, era a travessia do córrego Guarda-Mor, verdadeiro tesouro. Com sua água límpida e fresca correndo sobre os seixos rolados das mais variadas cores. Atravessava-se num local de pequena corredeira e bem raso onde sempre havia um show com voejar de dezenas de borboletas nas margens para saudar os caminhantes.
Esse singular curso d’água, que inclusive dava nome à fazenda, nasce a cerca de um quilômetro de distância da estrada principal, num lugar chamado de Campos Domingos Pereira e vai serpenteando em meio a paredões e sobre pranchas rochosas, cercado por vegetação exuberante até encontrar o Rio Indaiá, pouco mais de uma légua abaixo. Era de se viver dele. Não me lembro de outro lugar tão aprazível. Era um córrego muito piscoso e sempre fornecia bagres, lambaris, piaus e cascudos pescados com pequenos anzóis, pegos em peneiras grossas ou ainda com as próprias mãos nas locas estrategicamente escondidas. Sem dúvida era o lugar próprio para o lazer e nadar em suas águas era motivo de festa, principalmente nos meses quentes.
Nas encostas cobertas de cafezais os moradores ainda podiam, vez ou outra pegar algum tatu para uma deliciosa farofa.
Havia outro caminho de acesso à fazenda que era um pouco mais longo, mas igualmente inesquecível e com mais habitações.
Caminho nem tão mais usado para rodagem, começava na mesma estrada para a capital, a meio caminho entre a ponte do Córrego Confusão, também conhecido por Córrego Fundo e a descida da serra, distante cerca de cinco quilômetros. No terço inicial era um terreno muito arenoso e depois predominava a mesma formação rochosa composta por siltitos e ritmitos. Essa estrada que começava na única escola da região passava próxima à igreja dos Campos e do cemitério. Pouco depois da desocupação essas construções começaram a ruir e o campo santo foi invadido pelo mato e confundiu-se com a vegetação rasteira predominante. Mais abaixo, já chegando à fazenda, havia um campo de futebol que às vezes recebia times da redondeza para um inevitável arranca-rabo no final. Vigiando o campo uma velhíssima e imponente gameleira que segundo os nativos era morada do cão. Ali era o ponto mais alto da região e se podia divisar serras e vales daquele paraíso terrestre. De noite as luzes marcavam as cidades e povoados da redondeza.
A sede da fazenda se resumia a três construções, sendo a casa maior da avó e outras duas menores onde morava minha família numa que logo depois da mudança ruiu e na outra meus tios que foram os últimos a deixar a roça. Outros parentes moravam na localidade, mas um pouco mais distantes. A casa de referência era branca, suspensa sobre pilastras de madeira, assoalhada e tinha três portas e nove janelas. Para acesso à sala havia uma pequena escada de madeira e desse cômodo se chegava a um corredor no qual as portas se abriam para dois quartos amplos e ao final uma enorme cozinha com fogão de lenha e forno de ferro conjugado. Da cozinha uma porta dava para o quarto principal que era do tamanho da metade da casa e a outra para uma despensa onde sempre havia coisas muito gostosas: queijos, doces, latas com banha e carnes e frutas de ocasião, além dos alimentos comuns e não perecíveis, pois não existia geladeira. A luz era de lamparinas e lampiões. Na cozinha havia duas portas, uma era quase rente ao chão, com apenas um degrau e era usada pra entrada e do outro lado, para o sol nascente, a porta era aberta para um vão da altura de um adulto, apenas para ventilação. Num puxado contíguo à casa ficavam o quarto de farinha e o paiol para estocar milho e entre eles e a casa um enorme forno de barro. Minha avó era biscoiteira famosa e, além disso, era parteira. Grande parte da população dali nasceu pelas suas mãos, inclusive todos os netos.
Abaixo da casa e chegando até um pequeno córrego que fornecia a água para uso, havia um grande pomar com mangueiras, abacateiros, mamoeiros, jabuticabeiras, laranjeiras e para o lado da antiga casinha onde nasci um enorme pé-de-jacatiá, ou jaracatiá, fruta extinta em quase todo o país, exceto talvez no norte, onde é conhecida como mamão bravo. Na beira do córrego um ingazeiro com suas bagas doces sempre era visitado por micos e caxinguelês.
O quintal era vigiado por dois imponentes ipês, um amarelo e outro branco na frente da casa, do lado contrário ao pomar e entre a casa grande e a casinha dos meus tios um enorme bambuzal, depois do curral de juntar os bovinos. Depois tinha uma área plana usada para secar café e onde nas noites de lua se brincava em cantigas de roda e nas noites frias de junho se acendia fogueira. Vale frisar que o céu dali era o mais estrelado e competia com a beleza do lugar.
Os meninos tinham medo de passar perto desse bambuzal à noite, pois diziam que ali também seria morada do maligno. Do seu lado, perto do curral, havia um grande pé de bogarim cujas flores espalhavam um suave perfume naquela praça e como o sentido do olfato está mais ligado à memória, aquele cheiro me marcou para sempre.
Depois da casinha onde nasci havia uma grande área cercada, também chamada manga, um piquete para criação de porcos em regime intensivo.
Uma importante fonte de alimentação da família era a criação de galináceos e as galinhas poedeiras e frangos para abate ciscavam por todo o quintal, guardados pelos cachorros que mantinham os predadores à distância.
Ali por perto o Rio Indaiá fornecia peixes em abundância e não raramente os homens cercavam uma parte mais rasa do leito com bambus, direcionando os cardumes para armadilhas, os jequis. Dali retiravam piaus, mandis, curimatãs e outros.
Nas proximidades da casa havia plantações de arroz, feijão, milho, mandioca e hortaliças. Dessa forma as idas à venda que existia lá na estrada e que também era ponto de parada para ônibus e caminhões antes da descida da serra, se resumia a buscar querosene, sal e açúcar e beber uma cachaça da boa. Essa parada contava com a venda que tinha de tudo um pouco, levantada de um lado da estrada e do outro lado, a casa que também servia de pouso e onde se serviam refeições. Dali também se tinha uma bela visão da Serra da Saudade e, apesar da distância se via a casa da minha avó.
Nos arredores da sede moravam outros tios e agregados que trabalhavam a terra e lidavam principalmente no cultivo de café, grande motor da economia por aqueles tempos. Toda a gente formava uma grande família e não se distinguia parentes, principalmente entre a criançada que tratava a todos como os seus.
E havia algumas pessoas especiais que não eram familiares e nem moravam na fazenda, mas que marcaram de alguma forma, como uma senhora idosa, chamada Izefa, que morava nos arredores, numa fazenda próxima e era surda como uma porta, como se dizia. Ao vê-la as crianças gritavam: “cú de burro” e ela respondia: “bençoe”, mas era uma brincadeira apenas.
Lá pras bandas dos Campos morava o Zé Timóteo, figura lendária. Tinha o aspecto físico de um gnomo desses que nas histórias viviam nas florestas. Era nanico, com voz e bigodes grossos, mas a característica mais marcante era uma hérnia que ele tinha, também chamada quebradura e o testículo era do tamanho de um pepino, o que lhe conferia um ar mais assustador. Porém era um senhor muito pacato e bonachão e tinha poder para benzeduras variadas.
Deu-se que dos meus primos que moravam na roça, o mais velho, que à época do ocorrido tinha cerca de vinte e cinco anos, voltava à noite da casa da namorada a cavalo quando, ao passar por uma linha imaginária perpendicular à gameleira, distante uns trezentos metros da árvore fatídica, viu umas luzes que vieram em sua direção. Assustado, esporeou o animal e saíram em grande disparada na direção de casa, do lado contrário à visão. O pavor foi tamanho que o cavalo saltou por sobre uma porteira que havia na divisa e ambos desabaram, causando sérios ferimentos. Meu primo ficou à beira da morte e o tombo prejudicou-lhe a voz devido a traumatismo craniano. Uns diziam que ele vira fogos-fátuos, outros falavam de discos voadores, mas como o lugar já era considerado habitação do demo, ficou no imaginário popular que fora mesmo assombração.
Mas como já disse, o progresso, representado pelo asfalto que foi implantado pros lados do oeste, acabou por deixar aquela região, outrora tão cheia de vida, bastante desolada, parecendo que o tempo ali é mero observador.
Um calango atravessa velozmente, apesar da estrada vazia.

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Inspiração

O tema rural sempre me cativou.

Sobre a obra

Busquei fazer um preâmbulo, introduzindo a idéia geral e a conclusão.

Sobre o autor

Sou aposentado da Caixa onde trabalhei por vinte e oito anos, cinco meses e vinte e sete dias e sempre gostei de escrever.

Autor(a): LUIZ COELHO DOS SANTOS (Coelho)

APCEF/MG