Talentos

Um Voo Para Londres

Um Voo para Londres

- Se fosse noutros tempos, serviríamos mais que chá. Talvez alguns madaleine pudessem acompanhar nossas conversas e, acredite! as visitas não faltariam mais. Olha aí! Está vendo? Já passam das seis e nada! Não virão nunca mais.
- Não adianta. Elas sabem da nossa ruína. É por isso que desapareceram daqui como ratos fugindo da ratoeira ou da morte. Por isso nos abandonaram.
- De nossa parte não há problema nenhum. Pois que seja assim!
- Não há mal nisso; não importa. Será pior para elas. Continuaremos fingindo viver como duas dignas ladies de Londres mesmo que tudo nos comece a faltar.
- Você pode me servir um pouco mais de chá? Não precisa pôr muito açúcar. Tome cuidado com chávena! É uma relíquia da porcelana russa, nossos pais revirariam no túmulo caso essas suas mãos desajeitadas a transformem em cacos. Não nos perdoariam por nada nesse mundo. Acredite.
- Hum, desconjuro! Que boca, hein!
- Os pobres diabos dos empregados foram embora hoje cedo, sabia? Nos deixaram a ver navios, só porque não podemos mais lhes pagar os salários. Imagina! Coisa momentânea, claro.
- Uns ingratos é o que são.
- Não podemos deixar transparecer que o diacho da crise nos pegou de vez. Isso não! Não somos qualquer um.
- Ah, nós não! Ela só pega a gentalha. Somos muito superiores. Olha a nossa cor? Não tem graça nos nivelarmos a qualquer um... negro ou pardo. Isso não. Se as coisas apertarem de vez, damos um jeito como sempre demos. Deve restar alguma boa joia que ainda não empenhamos. Depois, poderemos pegar o avião para nossa velha e amada Londres; ela nos espera de braços abertos.
- Até que as coisas se acalmem...
- Até lá, devemos conservar as aparências para todos os efeitos. Lá que é o lugar para gente como a gente; afinal, nunca nos acostumamos com esses pobretões daqui.
- Não seja boba. Não tente mudar o rumo dos ventos. Não lhe fica bem. Olhe ao redor? As ruas fedem, as pessoas fedem. Algumas, que passaram a nos frequentar, sumiram de uma hora para outra sem explicação nenhuma aparente.
- Eram os tais emergentes. Eram, porque agora Inês é morta! Rá, rá, rá!
- Li no jornal que algumas cometeram suicídio; foi por causa das dívidas. Será verdade? Falta de pedigree, decerto. Dizem que empobreceram de uma hora para outra num passe de mágica. Perderam tudo, até o que não tinham. Que ética estranha têm. Se matam!
- São pessoas da classe baixa. A classe média de merda, é claro!
- Uma ralé! Queriam o que mais?
- E nem percebemos isso. Somos tão desajeitadas; mas não deve ser nada.
- Como ousaram viver tão perto de nós? A partir de agora temos que ter mais cuidados.
- Um acinte isso tudo!
- Por mim está resolvido. Amanhã mesmo comprarei os bilhetes. Voaremos para nossa paz. Londres nos espera de braços estendidos, e as lojas também... Não vejo a hora de sair o empréstimo! Quando tudo se acalmar talvez a gente volte. É.
- Quem sabe um dia...
- Mas que aprendamos a lição: não nos misturamos mais.

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Inspiração

Um dia ouvi uma frase dita por passante próximo a mim: Vamos amanhã para Londres. A frase serviu como mote para ambientar o conto num diálogo entres duas irmãs decadentes que gostariam que tudo fosse como antigamente.

Sobre a obra

Um dia ouvi uma frase dita por passante próximo a mim: Vamos amanhã para Londres. A frase serviu como mote para ambientar o conto num diálogo entres duas irmãs decadentes que gostariam que tudo fosse como antigamente.

Sobre o autor

Gosto de escrever contos e de buscar um ângulo novo de mostrar uma imagem.

Autor(a): CELIJON ABREU RAMOS (CELIJON RAMOS)

APCEF/MA