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A Fotografia da Alma

A Fotografia da Alma

Dedico este conto a todos os amantes e praticantes da arte que consegue paralisar o tempo, a fotografia. Uma homenagem especial a Sebastião Salgado, um mestre em fotografar a alma das pessoas.

Com uma câmera de brinquedo, que já era quase uma extensão de seu braço, Amanda fotografava, na casa de seu avô, tudo o que era possível: árvores, pássaros, formigas, nuvens no céu e pessoas que passavam em frente à casa. Esboçava um sorriso largo quando algumas delas “posavam” para a sua foto de brinquedo. Acelerava seu coração cada retorno de Seu Felício, o único fotógrafo na cidadezinha em que morava e a inspiração para Amanda, que já tinha traçado seu objetivo para sua vida profissional no futuro: ser fotógrafa. Na revelação das fotos, numa pecinha minúscula e escura da casa, acontecia outro tipo de revelação: era um momento único, de satisfação plena e admiração do resultado de um trabalho que envolvia arte, momento, precisão, química e sentimento de ambas as partes. Das trevas, a cada foto revelada, fazia-se a luz. Durante esse tempo, a escuridão da peça era a única testemunha das mais variadas conversas absurdas, engraçadas e educadoras da arte entre os dois.
– Amanda, você sabia que a fotografia é uma máquina do tempo?
– Como assim, vô?
– Ora, ela faz a gente voltar ao passado. A fotografia consegue voltar no tempo. As pessoas podem reviver as emoções, lugares, comemorações e tudo mais.
– Nossa, que incrível! – suspirava Amanda.
– Meu sonho é que um dia a fotografia possa revelar a alma das pessoas.
– Você vai conseguir isso um dia? – perguntava Amanda, incrédula.
– Vamos inventar um revelador especial. Mas veja a alegria dessa criança no seu aniversário! – disse ele, apontando para as fotografias. – Ei, olha a cara de preocupação do pai. Consegue ver esses detalhes, Amanda? Aqui está um pouco da alma das pessoas.
– Nossa! – suspirava a neta.
À medida que o tempo passava, os interesses de Amanda pela fotografia aumentavam e, como não poderia ser diferente, a garota passou a acompanhar o avô em todos os eventos possíveis, como casamentos, festas, inaugurações e inclusive velórios (lembrando que naquela época era comum esse procedimento, pois era uma maneira singular de homenagear os mortos).
Amanda tinha criatividade e curiosidade aguçadas, o que fazia dela um ser diferente. Na inauguração da loja de tecidos “Bonamigo”, pediu para o avô abraçar uma manequim com uma peruca loira e minissaia que estava na vitrine, simulando beijos e abraços. Seu Felício não teve dúvida e prontamente posou para as fotografias. Na pecinha de revelação, uns risinhos incontidos foram ouvidos pela Dona Guilhermina, esposa do
Seu Felício. Amanda apresentou as fotos para a avó, que, indignada, queria saber de imediato quem era a franguinha das fotos e corria pelos cantos da casa, dizendo que iria terminar o casamento. Assim passavam-se os dias; com bom humor, a parceria e a amizade cresciam entre avô e neta
Seu Felício de pronto notava que a neta era especial, diferente e criativa, numa arte que, na verdade, era apenas um registro de um instante passado. A cada tomada fotográfica, Amanda mostrava profissionalismo, detalhamento, enquadramento muito avançados, e um olhar surpreendente para as cenas. A cada revelação, o avô surpreendia-se com a composição e o resultado do trabalho de Amanda.
Como já era de se esperar, logo chegaram as cores e os flashes mudando radicalmente o mundo fotográfico, exigindo mais e mais dos profissionais. Mas Amanda, sempre um passo à frente, já dominava as técnicas necessárias para ser uma vanguardista no setor e já era considerada um ícone em toda a região, para orgulho de seu avô, que doravante iria curtir sua aposentadoria.
– Vô, agora, com toda essa tecnologia, será que conseguiremos, finalmente, fotografar a alma das pessoas? – perguntava Amanda sorridente.
Nesse instante, brota uma lágrima no rosto de Seu Felício. Incrível! Como ela poderia lembrar-se disso? Era uma menininha...
Um dia, quando Amanda foi interrompida, durante um ensaio fotográfico de moda, pressentiu que algo não ia bem. Ao chegar à casa do avô, avistou uma ambulância e várias pessoas no local. Dona Guilhermina, num abraço apertado e com lágrimas nos olhos, fez Amanda perceber que já era tarde para qualquer despedida em vida. O infarto que levara Seu Felício levou também uma parte de Amanda. Seus dias, a partir de então, seriam mais tristes, e com certeza o tempo se encarregaria de, aos poucos, devolver sua alegria de viver.
Amanda e Dona Guilhermina foram surpreendidas pela enorme quantidade de pessoas presentes no velório. Formou-se uma multidão, e os espaços ficavam cada vez mais diminutos. De fato, Amanda não conhecia todas as pessoas presentes, mas, à medida que elas se aproximavam do caixão, para se despedir do fotógrafo, demonstravam uma enorme gratidão e um carinho especial por um profissional que a vida inteira registrou os momentos mais lindos e emocionantes de suas vidas, deixando-lhes ainda a possibilidade de revivê-los. Agora Amanda, numa satisfação e alegria interior, percebia claramente que Seu Felício atingira seu objetivo. Sua atitude tornou isso realizável. Sim, era possível ver a alma de todas aquelas pessoas, caso as fotografasse naquele momento. Não precisaria de um revelador especial.


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Inspiração

Admiro demais a obra de Sebastião Salgado e de todos fotógrafos.Uma homenagem a todos artistas e profissionais da fotografia.

Sobre a obra

A Imaginação nos leva a lugares e tempos que nunca estivemos. Fui imaginando as cenas e escrevendo.

Sobre o autor

Gosto de Poesia e Contos. Por que não escrever também?

Autor(a): ILBERTO LUIS TRENTIN (Ilberto Trentin)

APCEF/RS