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A PROMESSA

A PROMESSA

Bastante receosa com a pandemia que o mundo atravessa, tenho voltado a rezar. Num desses momentos de invocação a Deus e aos santos, lembrei-me de uma história que aconteceu há alguns anos.

Eu sempre criticava quem ia a Canindé, no Ceará, pagar promessas para São Francisco. Pra mim aquilo era turismo, uma forma das pessoas viajarem compulsoriamente, mesmo com pouco ou nenhum dinheiro, muitas vezes penduradas em paus-de-arara, uma adaptação feita em caminhões para carregar pessoas na carroceria.

Mas eu estava num leito de hospital, assustada, tinha apenas 27 anos e queria criar meus filhos. Explico. Peguei uma infecção hospitalar depois de uma cirurgia de cesárea que complicou muito, levando a um quadro de trombose venosa profunda na perna direita. Coincidência das coincidências, assisti uma matéria na TV do hospital mostrando que o Brasil era campeão em cesárea desnecessária e, consequentemente, em morte de mulheres decorrente dessa prática. Fiquei apavorada! Era inimaginável deixar dois filhos pequenos para serem criados por uma madrasta.

Recorri a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, minha santa preferida e fiz promessa para entrar de joelhos na igrejinha da Vila Operária, que é um centro de peregrinação e devoção à santa, aqui em Teresina. No entanto, essa novena eu já sabia de cor e avaliei que entrar de joelhos não seria um sacrifício tão grande assim. Foi aí que lembrei de São Francisco de Assis, de quem eu também era fã, e tive uma ideia: se eu ficasse boa, faria o que sempre critiquei, iria a Canindé, de roupa marrom e ainda levaria uma relíquia, no caso minha perna direita esculpida em madeira, para oferecer ao santo.

E assim foi. Mais ou menos um ano depois, peguei um ônibus daqui para Fortaleza com o objetivo de pagar a promessa. Não falei ao santo que teria que ser de ônibus, mas achei que se eu fosse de avião o sacrifício seria pequeno e o santo merecia mais, afinal de contas eu estava viva e com saúde graças a ele.

O ônibus saía às vinte horas, chegando em Fortaleza por volta das cinco da manhã. Como eu nunca consegui dormir em viagens, nem mesmo quando ainda criança viajava com meus pais, sabia que aquela seria uma noite insone, mas tudo bem fazer esse sacrifício extra ao santo.

Lá pelas tantas da madrugada, todo mundo dormindo no ônibus, alguns roncando, fechei os olhos pra tentar uma cochilada, pois já sentia minhas pernas inchadas e a cabeça zonza. A estrada em péssimas condições fazia do trajeto uma viagem mais longa do que o necessário e o motorista ziguezagueava pelos buracos.

De repente, abri os olhos no exato momento em que o motorista contornava uma enorme cratera. O ônibus estava fortemente inclinado para o meu lado e, num milésimo de segundo eu pensei: vai capotar, vou morrer sem conseguir pagar minha promessa! Comecei a gritar desesperada, acordando todos os passageiros, que começaram a gritar também sem saber bem o motivo. Foi uma algazarra geral.

O ônibus parou, o motorista e seu auxiliar saíram da cabine, acenderam as luzes e perguntaram indignados: - O que houve? Alguém está morrendo? Quem começou a gritar?

Silêncio geral, todos se olharam, ninguém assumiu, inclusive eu, que fiquei quietinha no meu banco, com uma vergonha contida que ninguém conseguiu detectar.

Resumo da ópera: fui a Canindé, mesmo fora da época do festejo (pois não tinha prometido essa parte), fui de roupa marrom, mesmo sendo uma bermuda e camiseta, pois também não prometi vestir a túnica do santo e minha perna de madeira, mesmo fina e sem parecer nem um pouco com a verdadeira, deve repousar até hoje entre as milhares de relíquias que são oferecidas a São Francisco de Canindé pelos romeiros, os quais eu passei a entender e respeitar.

Ah, voltei de avião!

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Inspiração

A vontade de escrever crônicas é antiga. Esta edição do Talentos FENAE em plena quarentena foi o catalisador dessa experiência, que se mostrou extremamente interessante. Consegui escrever duas crônicas com base em fatos pitorescos e tragicômicos da minha vida pessoal.

Sobre a obra

Escrevi como se estivesse contando a história verbalmente e me surpreendi com a facilidade com que o texto fluiu. Se consegui escrever uma crônica, ótimo. Se não, pelo menos me diverti bastante, o que foi um verdadeiro bálsamo nesse momento difícil.

Sobre o autor

Autodidata e sem um estilo definido, fotografo há bastante tempo, como hobby. Valorizo e invisto tempo. Depois de aposentada, comecei a escrever poemas, também de forma intuitiva. É a forma que encontro para fugir um pouco da aridez da vida, funciona como uma terapia.

Autor(a): EDILENE MARIA MOURA FACUNDES (Edilene Facundes)

APCEF/PI