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Antigamente Era Melhor
Antigamente que era melhor. As famílias duravam porque existia respeito. Se quebrava, consertava. O amor era eterno.
Yolanda nasceu em 1929. Sua mãe, uma jovem viúva, casou-se e logo em seguida faleceu por motivos desconhecidos a nós, deixando as filhas sob os cuidados do padrasto, que por sorte, era um homem decente. Seu Raul manteve a promessa feita à esposa moribunda de cuidar das enteadas com dignidade até que tomassem o próprio rumo na vida.
Yolanda não era fácil.
Dentre as suas peripécias constam fugas de casa, brigas de rua, pedradas em vizinhos abusivos e contendas com uma madrasta ciumenta, que culminaram com nossa protagonista cortando o vestido de noiva da criatura em pedacinhos à véspera do casamento com seu considerado pai, em retaliação aos maus-tratos sofridos.
Yolanda não se dobrava.
Nas diversas vezes em que fugiu de casa por inúmeros motivos, aprendeu a se virar na rua. E, mesmo depois de conhecer Fernando, aquele que viria a ser seu marido, enrolou o quanto pôde até aceitar consumar a união. Parecia que adivinhava o que estava por vir. E logo se arrependeu. Ela dizia, décadas depois, às netas: "amo meus filhos, mas eu ficava com TANTA RAIVA toda vez que descobria que tinha pegado menino"; "se eu fosse você, hoje em dia, com dinheiro e estudo, nunca na vida que eu ia casar" e "Deus me livre casar de novo", dentre outras pérolas.
Ser uma mulher casada numa família quase remediada significava primordialmente estar em casa. Cuidar. Limpar. Passar brilhantina dos cabelos do amado. À medida que ia "pegando" filhos contra a própria vontade, estava mais presa aos caprichos do marido, que, como homem e dono da casa, saía, bebia, aprontava e exigia camisas engomadas para o dia seguinte. A cada barriga, o cerco se apertava contra ela e qualquer oportunidade de recomeçar. Não tinha mais com quem contar. Parentes distantes no interior. Sem mãe, sem pai. As irmãs, casadas com homens piores, cuidando das próprias piores vidas.
Entre as décadas de 50 e 60, nossa protagonista resolveu que queria o próprio dinheirinho. Mas não podia trabalhar fora. Teve a ideia de fazer cocadas e vendê-las num tabuleiro à porta de casa. E a cocada vendia. O marido, ao se deparar com a cena, ficou furioso: "mulher minha não vende coisa na rua!" - e proibiu a cocada. Decidida a não abrir mão de seu pequeno negócio, vendia às escondidas enquanto o homem estava fora trabalhando.
O trabalho dele consistia numa "lotação", que ele dirigia para cima e para baixo, umas vezes com passageiros, outras vezes com as putas em farra. Na realidade, a família era basicamente sustentada pelo seu pai, um imigrante que "fez sua América" no Brasil.
Voltando à cocada: um belo dia, o bendito marido resolveu voltar mais cedo e pegou a empresa da mulher a pleno vapor. Irado, desmontou o tabuleiro e, depois de muita discussão, estapeou a esposa, que, como o gato furioso que era, avançou em sua direção, rasgando-lhe a roupa e a cara a unhadas e fugindo de casa em seguida.
Magoada e humilhada, nossa protagonista não queria mais estar com o irredutível e agressivo marido. Tinha brios! Não iria ficar apanhada à toa. Não enfrentou uma madrasta perversa, não aprendeu a trocar soco nas ruas à toa. Refugiou-se no sótão de uma conhecida e visitava os filhos às escondidas, com o acobertamento da sogra, enquanto ele saia de casa para brincar de trabalhar e fingir não se importar com a mulher, “aquela tinhosa”.
Depois de vários dias e nenhum retorno, o marido abandonado, também esperto e desconfiado com a serenidade das crianças, resolveu tocaiar a casa e descobriu a esposa fugitiva, bem como seu esconderijo. A seguiu e implorou perdão. De joelhos. Às lágrimas. A resposta era “NÃO”. Mais romarias e serenatas à porta da amiga incomodada, que de nada adiantavam.
Yolanda estava irredutível, até se dar conta de que o mal estar e sintomas que a vinham afligindo não eram coisa qualquer. A sífilis batia à porta. O marido, além de fanfarrão e autoritário, também era um vetor de doenças. Onde iria conseguir emprego, doente? Para onde iria, com dois filhos pequenos? A realidade doía mais que os tapas. Um tiro no pé ou na mão? Em casa teria os filhos. Remédios. Um quarto sem morcegos. Assim, após o ínfimo prazer de torturá-lo com o abandono, engoliu um côco seco de orgulho e voltou para casa. E a proibição aos negócios seguia.
Fernando era um poeta nos primeiros dias após seu retorno. Quando o medo da perda se dissipou, voltou gradualmente aos automóveis e farras que ele chamava de trabalho. E, num dos dias em que retornou bêbado, Yolanda, escondida atrás da porta, percebeu que ele escondia várias cédulas de dinheiro dentro do forro do sofá.
Daquele dia em diante, nunca mais se discutiu sobre tabuleiros de cocada naquele lar.
Yolanda passou a diariamente aguardar o marido chegar enquanto fumava à porta de casa, num misto de resistência e afronta disfarçados de saudade e dedicação. E, mesmo após ficar viúva, manteve a tradição de comer cocada à porta de casa com os filhos e, posteriormente, com os netos.
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Inspiração
Desde criança ouvi diversas histórias sobre a minha avó: algumas absurdas, outras tristes, outras engraçadas. A maioria era um misto das três coisas. Em homenagem a seus causos e a outras mulheres igualmente corajosas, criei esta curta ficção carregada de ironia, porém, real para muitos, infelizmente.
Sobre a obra
Compilei diversas histórias da vida da minha avó e outras mulheres que admiro e as condensei neste conto. Sigo a escrita livre.
Sobre o autor
Respiro arte em seus diversos formatos. Gosto de interações e intervenções. Às vezes me pego desenhando música, cantando um desenho ou dançando um filme.
Autor(a): FERNANDA LIZ PINO DE JESUS (Nanda)
APCEF/BA