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Estima
ESTIMA
Dizia que não era ligada a animais. Não que fosse avessa, tratava-os bem, desde que ficassem a distância. Nascida e criada em cidade grande, morando em apartamento pequeno, poderia ser uma boa justificativa. Mas não era nada disso. Simplesmente, não gostava. Abanadinha de rabo de cachorro, enroscada de gato, ou mesmo, sua linguinha quente... de jeito nenhum que ela caía na rede. E os passarinhos? Canarinho-belga, pássaro-preto. Gorjeios e trinados. Uma beleza, soltos. Gaiola dourada com bebedouro de acrílico, balanço e aparador de sujeira. Lindo, mas na casa dos outros.
Um belo dia, Helga apaixonou-se. Profundamente, como dizem. Foi recíproco, porque Samuel, engenheiro, bem de vida, já era contado como solteirão convicto. Das noitadas regadas a uísque, passou a deitar-se cedo e chegou à conclusão de que tinha chegado a hora de formar uma família. Helga, orgulhosa por ter conseguido o que a maioria afirmava impossível. Casaram-se. A festa teve todos os requintes e, por incrível que pareça, ninguém saiu falando de algum deslize.
Apesar de padrinho, perdi o contato com eles, pois fui transferido para Florianópolis, onde estou há cinco anos. E vocês sabem como é: um telefonema, hoje; amanhã, uma conversinha pelo facetime, mensagens natalinas e vai rareando, rareando e, pronto, tomada desligada.
Em viagem de trabalho para o Rio, fiquei de castigo horas no aeroporto de Congonhas. Andei pelas lojas, livrarias, desci e subi, não sei quantas vezes, a escada rolante, cochilei. Olhava incessante para o painel dos voos e não conseguia entender mais nada do que era dito, pelo microfone, para alertar os passageiros. Via-me na verdadeira Torre de Babel. Fui até a companhia. Disseram-me, então, que um ônibus levaria os passageiros a um hotel, onde passaríamos a noite. Confirmaram o voo para o outro dia, às seis horas.
No hotel, deixei meu paletó no apartamento e fui até o restaurante. Instalei-me numa mesa mais no canto. Pedi a carta de vinhos. De repente, senti uma movimentação diferente. Virei e vi o recepcionista conversando com uma mulher; de costas, um mulherão. Ele falava baixo. Ela também. Notei que ela carregava alguma coisa, além da bolsa. O recepcionista fez um sinal para um garçom, que, pouco depois, surgiu com um cesto. Aí, ela se virou. Mais bonita, mais sofisticada, mais mulher: Helga. O motivo da conversa prolongada, acomodado no cesto — um cachorrinho.
Pela minha indiscrição, ela e o recepcionista — o cachorro não — me encararam. Como saboreava o vinho, o jeito foi erguer o copo e sorrir. E não é que ela me reconheceu? De passadas largas, seguida por todos os olhares, encaminhou-se para mim que já me levantara. Os beijinhos de praxe e “não acredito... você sumiu!”. Sentamo-nos. Não havia feito o pedido e, assim, escolhemos o prato juntos. O cachorrinho, na cesta, em outra cadeira.
— Rick, Rick é o nome. Não é fofo? Não desgrudo dele nem um minuto.
Como hoje em dia, na mesma hora que se casa, descasa-se, abstive-me de lhe perguntar por Samuel. Poderia dar um fora. Um passado desagradável, Samuel ter aprontado, essas coisas acontecem.
— Você ficou sabendo?
— De quê?
— Humberto, foi tão comentado!
— Não, não sei de nada.
— Eu e Samuel nos separamos. Ficamos oito meses juntos.
— Incrível, Helga. O Samuel... você... casal perfeito. Caramba!
— É... as coisas não andam como a gente quer, como a gente pensa. No início, maravilha. Café na cama. Almoço juntos. A pressa para chegar em casa depois do serviço.
— Adaptação leva tempo. Afinal, são dois estranhos que passam a conviver, a dividir tudo.
— Se fosse isso... Depois de dois meses, foram trinta minutos atrasado; depois, uma hora e assim por diante.
— Atropelo nos negócios. Megaempresário.
— Que atropelo, Humberto! Você conhece a peça. Voltou aos antigos hábitos.
— Amigos?
— Ó se... farras e mais farras. E...
— ...
— Bichos. Bichos e mais bichos. Todos sabem que eu não gosto. Trato bem, mas sem fanatismo. Animal é animal, gente é gente.
— Lembro-me... ele lhe prometeu não levar Athos e Porthos, os dois rottweillers.
— Primeiro, chegou com os passarinhos. Gaiola de fazer inveja a qualquer joalheria. Tudo bem. Ainda estava encantada. Passei a apreciar as avezinhas... de longe.
— Por mim, prefiro soltos.
— Pássaros, não é? Você é um homem inteligente. Humberto, depois ele apareceu com os dois monstros. Pensa que ficavam no canil? Não. Livres, livres. Eu é que ficava presa no meu medo.
Dei uma gargalhada
— Estou imaginando a cena.
— Cena de terror. Eu enfrentei. E tolerei.
Fez um silêncio e continuou
— Tenho autocrítica. Sou educada, culta, bonita, independente financeiramente. Aguentei muita coisa. Mas, traição... Jamais. Peguei-o em flagrante.
— ...
— Fiquei exatamente oito meses casada, casada — desculpe-me a expressão — com um cachorro. Quase uma gestação. E que gestação!
— Mas, Helga, e esse cachorrinho aí?
— Simplesmente, troquei um cachorro por outro. Pelo menos, este me respeita. Traição, jamais. É castrado.
Ela levantou o copo:
— Amigo, tim-tim,
— A nós.
— E aos atrasos de voo.
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Inspiração
A incoerência ou redenção de uma conhecida que tinha raiva dos cães de seu marido.Depois que se enviuvou, abriu, em seu sítio, um imenso canil para acolher cães sem dono.
Sobre a obra
É um conto leve e surpreendente. O diálogo ajuda a desenrolar a história sem ficar enfadonha.
Sobre o autor
Vou completar 76 anos, no dia 09 de julho, porém, sou uma eterna adolescente. Sou casada, tenho quatro filhos e quatro netos. Meus amigos continuam sendo os da minha infância. Gosto muito de gente.
Talento tem que ser construído. Livros ocupam um lugar de destaque na minha vida.Livros editados: Essetremloucodavida- contos; e Manhã de Sol.
Autor(a): SULAMITA COELHO AMARAL (Sulamita Coelho)
APCEF/MG