Talentos

BIGODE NA TESTA

No tamborete coxo, a velha sentou como se estivesse em um trono amarelecido pelo ouro. Estava trajada de quaresma e o vestido imitava, ao meio-dia, uma noite com luz morta: sem lua e estrelas. A sala do trono era um alpendre sob um telheiro curto e baixo. Quando o menino surgiu de dentro da floresta de umbuzeiros, a velha levantou do seu assento e foi até o terreiro escorada no cabo de uma vassoura de piaçava:
- Dê-me o ovo! - ordenou a senhora com soberba. - É um ovo de nambu! - constatou com fúria a velha. - E continuou: - Menino, todas as galinhas que crio aqui no sítio bota ovo dentro dos caçuás no fundo da casa-de-farinha, mas Bigode na Testa não. Desde quando andou se aninhando e, ao que parece, principiou sua primeira postura, nunca aproveitei um ovo dela. Mas, na hora que faço chover milho nesse terreirão, Bigode na Testa é a galinha que mais enche o papo. Nunca levei para feira um ovo sequer dela para vender. Se eu soubesse que Bigode na Testa me daria trabalho e prejuízo assim, tinha deixado morrer de catarro, no aceiro da estrada, no dia em que a encontrei. Menino, Bigode na Testa não foi tirada de nenhuma ninhada nascida aqui. Certo dia, quando voltava da feira, uma bruguela parecia estar morta debaixo de um pé de Mulungu. Parecia ter todo o tipo de gôgo: de caroço na crista, do que faz arquejar de bico aberto, do que tapa as vistas, do que faz apitar igual navio. Recolhi a miserável porque fiquei piedosa diante da fragilidade dela. Se vivesse, seria a galinha mais diferente que já existiu nessa caatinga: ela tinha um bigode na testa! Menino, crio galinha porque minha mãe também assim fazia. A minha riqueza vem dos ovos que vendo na feira. Sou fornida de dinheiro e tenho nota para amarrar todos os pés de umbu que existem nessa floresta sem fim. Mas nunca possuí uma galinha assim tão estranha. Minha mãe criava galinha terrança, mutuca e de raça. Dentre elas, tinha galinha pelê, pedrês, nanica, gogó-de-sola, gigante negro, arrepiada, suru, de bota, barbuda e de peruca. Para o meu desgosto, um dia achei a tal da Bigode na Testa desfalecida no aceiro da estrada. Levei para casa, deitei a frágil criatura perto da boca do fogão de lenha para esquentá-la. Dei para ela comer manteiga de fazenda e alho pisado: remédios infalíveis para coriza. Depois fiz uma papa de leite com finiscos de carne assada e dei para Bigode na Testa comer. No outro dia, para a minha admiração, a bruguela já amanheceu ciscando no pé da parede do oitão. Você, menino, até entende de galinhas, mas não de Bigode na Testa. Se eu fosse criança igual a você, se eu tivesse as minhas pernas sadias, se eu pudesse andar sem me escorar nesse cabo de vassoura, eu achava o ninho dela. Procurava por todo esse chão, até pelos ares, pelas copas das árvores. Bigode na Testa, menino, faz tudo isso para me tesar, para me matar de raiva: é! Se ela não quisesse botar ovo nos caçuás como as demais, colocasse nos ninhos que já fiz para ela: no canto da cantareira; por detrás das lenhas debaixo do pé de barriguda; no coxo do curral das cabras. Menino, grave na mente o que vou falar: se eu pegar Bigode na Testa, amarro ela igual se apeia guaiamum, jogo debaixo do cesto. Se Bigode na Testa não por ovo, eu desconjunto ela e faço um pirão. E nós vamos arrotar o cheiro dela por esse terreirão. Ah, vamos!

O cachimbo do sol caiu esfumaçando o céu de abóbora e roxo. E a noite deitou em uma rede de tecido escuro, úmido e frio. A velha já estava na camarinha, ajeitando-se para dormir, quando ouviu cacarejos vindos do terreiro do casarão:
- Oxente, será que é Bigode na Testa que desceu do poleiro e está presepando na estrada que leva à porteira? - o menino perguntou para velha, em voz alta, sentado na mesa da cozinha, terminando de comer um pedaço de cuscuz feito de milho verde.
- Pegue o candeeiro, menino. E vá na ponta do pé e veja se é Bigode na Testa que resolveu botar ovo em hora morta! – ordenou a velha gritando e sentada num pinico dentro do quarto.


O menino flutuou até a janela e, olhando pelo buraco da chave, avistou uma galinha vermelhinha de brinco branco e um pintinho pedrês agasalhado debaixo da asa dela. Ambos de pé e paralisados, direcionando o olhar para a casa:
- Boa noite, se for de boa noite! - gritou o menino de dentro do casario, imaginando que ali fora tivesse alguém e que, por essa razão, a galinha havia se espantado e cacarejado.
- Boa noite! - respondeu a galinha vermelhinha de brinco branco. - E continuou - A velha está acordada?


Ao ouvir a galinha falar, o menino teve um medo tão grande que deixou rasgar um peido bem alto.
- Se acocore que é tiro, menino! - gritou a velha do quarto, já de pé, ajeitando o vestido com uma mão, a outra escorada na vassoura de piaçava.
- Não foi tiro não. Foi um peido que eu afrouxei sem querer! - disse envergonhada a criança.
- Desconjuro! Por isso que o teu calção caiu no chão e aqui na sala está esse fedor de suvaco de caranguejo: miseriqueima! Olhe: se vista e me fale o que está acontecendo!
- Abra a janela que a senhora vai ver! - orientou o menino todo trêmulo.


Quando a velha tirou a tramela e abriu a janela, viu uma galinha no terreiro e um pintinho. Apurando as vistas, logo percebeu que não eram da sua criação.
- Quero uma informação da senhora! - explicou a galinha vermelhinha de brinco branco.
A velha bateu a janela fortemente e, com os cabelos de pé, levantados pelo susto, gritou:
- É lobisomem!


Ao ouvir o que foi dito pela anciã, o menino soltou outro peido, tão forte, que o povo do vilarejo próximo acordou atordoado pensando ser um terremoto.
- Nunca vi galinha falar! Deve ser um lobisomem que se virou por debaixo de um poleiro. E pegou a forma de uma galinha. - falou a velha, tentando escorar um sepo na porta de entrada, atordoada ao mesmo tempo pelo medo da visagem, pelo papoco do peido e pelo fedor de boqueira de lagartixa que a bufa trouxe.
- Fiquem tranquilos. Não sou lobisomem. E nem assombração. Sou uma galinha apenas. É que minha mãe casou com um papagaio. Aí nasci galinha por parte de mãe e falando igual ao meu pai. - apaziguou os ânimos a galinha vermelhinha de brinco branco.
- Vôte! - disse o menino olhando para a velha que, mesma com medo e já amarela pela fedentina, abria a janela outra vez.
- E que informação é essa que a senhora almeja, dona galinha? - questionou desconfiada a velha.
- Aqui é a casa de uma quenga de nome Bigode na Testa? - inquiriu a galinha vermelhinha de brinco branco.
- Oxente, e a senhora pode chamar minha galinha de quenga? - indignou-se a velha. E olhando para o menino falou num tom quase inaudível: - você já ouviu dizer que galinha quengasse, menino?
- Nós estamos vendo e ouvindo uma galinha falar. Não duvido mais de nada nesse mundo. – respondeu a criança num mesmo tom de voz.
- Não só digo que é quenga como provo. Está aqui a certidão do meu casamento! – protestou a galinha vermelhinha de brinco branco.
- Oxente, e galinha pode casar no papel? - questionou o menino!
- Não! Mas a minha avô, que é uma coruja, era a ave de estimação de um dono de cartório. O velho era vitalino e faleceu sem herdeiro e parente conhecido, deixando o tabelionato como herança para a minha vovozinha. Assim, como ela passou a ser a dona, autorizou e houve o casamento.
- O pai é um papagaio! E a avô é uma coruja dona de um cartório! Vôte: que família estranha! - espantou-se a criança.
- Como a senhora constata, se eu sou a esposa legal, não resta outra alternativa a Bigode na Testa a não ser a quenga do meu marido! – afirmou a galinha vermelhinha de brinco branco.

No poleiro, armado debaixo de uma velha jaqueira sem folhas dentro do curral das cabras, as galinhas do terreiro já estavam acordadas desde a hora do peido que o menino afrouxou e balançou o mundo.
- Dona galinha, use um tom de voz mais baixo porque as galinhas no poleiro vão acordar na hora errada e podem despertar irritadas e não quererem botar ovo hoje e eu fique no prejuízo já que amanhã é dia de feira e já tenho encomenda pra levar. - pediu a velha desconfiada.
- Apresente sua feição aqui no terreiro, quenga! Saia para ver o filho que sofre, igual a suvaco de aleijado, porque vê a mãe judiada na unha do pai por sua causa, quenga descarada. – Gritou em desobediência a galinha.
- Cale a boca e desocupe minha porta, atrevida! - ordenou a velha severamente. E continuou: - Se você não sair da minha propriedade agora, vou pedir para esse menino soltar um peido dentro de um pacote de pão vazio e depois coloco a cabeça sua e desse brugelo gogento dentro para respirarem o vento quente que ele solta.
- Deus me defenda! - a galinha e o pintinho saíram tão rápidos que não fizeram nem poeira.

A velha furiosa gritou:
- Não adianta correr! O pintinho não vai acompanhar a velocidade dos seus passos. Vou atrás de você, galinha desaforada, e quando o seu filhinho cansar as frágeis pernas, você terá que parar para ajudá-lo e aí, nesse momento, eu os terei alcançado, vou capturá-los, apear você com uma pindoba numa raiz de cajueiro e obrigar você a por todo dia ovo para eu vender na feira e fazer cair mais moeda de dinheiro nos bolsos do meu vestido!

E por uma estrada de areia estreita e escura iam desenfreados a galinha vermelhinha de brinco branco, logo atrás o seu filhote, o pintinho pedrês, depois o menino, e, por derradeiro, cambaleando, escorada numa vassoura de piaçava numa das mãos, na outra empunhando um candeeiro, vinha a velha, toda zambeta, engolindo uma saliva com sabor de ódio. De repente, surgiu uma densa neblina e o fogo do candeeiro se apagou. A galinha, o pintinho e o menino sumiram: a velha ouvia os passos deles se distanciando. Uma lua imensa apareceu no céu. A velha sentiu vontade de urinar de repente. Saiu com dificuldade da estrada e foi para o aceiro. Pousou o candeeiro sem luz nos capins. Suspendeu o vestido na altura do quadril e se acocorou segurando na vassoura de piaçava e se apoiando numa estaca de jurema na cerca. Quando principiou a mijação, subiu um cheiro de cunhão de boi velho:
- Vije que fedor! Acocorei-me para mijar, parece que estou é cagando! – Disse a velha fazendo careta.


Nisso, a idosa sentiu uns cabelos passarem pelo pescoço. A velha assustada soltou as mãos da estaca e da vassoura e imediatamente as levou ao encontro do cabelo que a havia tocado. E ali, na margem da estrada, no escuro e sozinha, a velha abraçou como que uma barriga de um urso. Quando a anciã arribou os olhos, percebeu que um lobisomem estava cagando de cócoras ao lado dela. A velha deu um grito que fez balançar o sino na torre da igreja no vilarejo próximo acordando o povo de madrugada para uma missa inexistente. Depois disso, a idosa partiu em uma carreira: era a velha na frente toda trôpega e o lobisomem atrás, pega mais não pega. Na velocidade que iam, a velha e o Lobo conseguiram alcançar e ultrapassar a galinha vermelhinha de brinco branco, o pintinho pedrês e o menino peidão. Quando chegaram em uma curva, a idosa, atrapalhada pelo medo, ao invés de cortar volta, sobrou e passou direto caindo numa ribanceira. A senhorinha bolou por capim, gravetos e quando chegou no fundo do precipício, o dia já amanhecia. Estava viva, aliviada porque a luz do sol afastaria o feroz lobisomem, mas estava com os cabelos todo empastado. A princípio pensou que fosse sangue, afinal era verão e os riachos estavam secos, não havia lama por ali. Ao levar a mão a cabeça e cheirar a gosma que grudou no dedo, constatou que era cheiro de ovo. Quando a velha levantou-se, toda troncha, com o vestido em frangalhos, os cabelos ensopados de clara e gema, percebeu que havia caído em cima de um ninho de galinha, quebrado todos os ovos e esmagado com o peso do seu corpo a galinha dona do ninho: a tal da Bigode na Testa.


- Menino, está na hora de comer! Já é meio-dia: lave os pés e venha fazer o seu prato. É a finada Bigode na Testa quem está borbulhando na panela de barro na segunda boca da chapa do fogão de lenha. Pegue o prato, destampe a panela, colha o molho com a colher de pau e ponha farinha, faça uma farofa. Só não pegue o pescoço e os pés que são as partes que mais gosto. O resto da carcaça, se tiver fome e lugar nesse bucho, pode comer! Agora, se de repente gerar um peido dentro da sua barriga, aperte as bandas e vá ventar lá dentro da floresta de umbuzeiros viu. É menino: nunca comi e nem nunca vendi um ovo de Bigode na Testa. Bigode na Testa nunca quis ser minha. Por qual razão então Bigode na Testa seria do mundo?




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Inspiração

Revendo um antigo álbum de fotografia, encontrei uma foto que imaginava estar perdida. Nela, uma velha, um menino e uma galinha são capturados pela câmara num entardecer de um dia de verão.

Sobre a obra

O conto BIGODE NA TESTA é um conto de humor!

Sobre o autor

Sou empregado da Caixa e nos momentos de lazer me dedico a escrita de contos.

Autor(a): JOAOZITO ALMIRANTE SANTOS JUNIOR (JUNIOR JOAOZITO)

APCEF/SE