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QUANDO A GENTE TINHA TEMPO...

QUANDO A GENTE TINHA TEMPO...
Raul Marques

Era 1970. O planeta inteiro aguardava com grande expectativa a realização de mais uma Copa do Mundo. O Brasil, em particular, nutria uma paixão tão gigantesca por sua Seleção – a chamada Seleção Canarinho -, que era simplesmente uma ofensa considerar que não seríamos campeões mais uma vez; aliás, desta feita era o tricampeonato.
Não obstante tamanha motivação nacional, vivíamos também uma efervescência politica e a nação estava ávida por transformações em toda a sua estrutura administrativa. Vivíamos uma tremenda recessão causada pelo petróleo, não apenas o Brasil, mas, igualmente, a Suécia, Estados Unidos e Reino Unido. Por outro lado, Japão e Alemanha Ocidental evidenciavam um bom crescimento. Foi nesta época que deram início aos movimentos em favor dos cuidados com o meio ambiente, também.
Foi na década de 1970 que o mundo inteiro começou a perceber um crescimento exponencial das tecnologias, das ciências, enfim. Foi aí que Stephen Hawking surpreendeu o mundo acadêmico com as suas teorias sobre “os buracos negros”; o famoso fóssil de “Lucy” foi descoberto acirrando mais a discussão do pensamento evolucionário, etc.
O universo musical estava muito bem representado por canções e compositores muito criativos e ricos em conteúdos, influenciando o pensamento político e social de forma muito marcante. Conquanto tanta coisa assim estivesse ocorrendo numa dinâmica própria da época, não podemos esquecer que se desfrutavam muito mais qualitativamente de um fator preciosíssimo: o tempo! Não obstante a quantidade espacial do tempo nunca houvesse mudado, era possível, por exemplo, desfrutar de uma agenda menos frenética e desconcertante como temos agora.
Lembro com muita ternura e saudade do tempo em que o meu pai, simples comerciante de mercearia no interior do Estado, sempre sentava à mesa com toda a família; todos lhe pediam a bênção – a pai e mãe -, e em seguida ele partia para abrir o seu comércio às sete na manhã, trabalhava até às 11h00, fechava para reabrir das 13h00 até as 17h00. A garotada toda seguia para a escola, todos cumprindo o mesmo horário.
Meu pai tinha uma veia poética e, certa vez sem que ele soubesse, descobri em baixo de umas folhas de papel de embrulho que ele sempre punha sobre a sua mesinha, que também servia para guardar suas economias, derivadas das vendas do dia, eu encontrei alguns poemas. Todos tão simples, mas tão verdadeiros! Um deles tinha como título “A Bicicleta”. Era um relato poético da trajetória dele de casa para o trabalho e vice-versa. Era encantador saber que tinha um pai poeta!
Minha mãe sempre foi profundamente motivada e entusiasta! Sempre dava um jeito de “ficar antenada” com coisas que eram interessantes para a sua prole. Ela incentivava nos estudos e ele nos impulsionava para a realização de sonhos artísticos e literários. Tínhamos tempo! Dava tempo fazer de tudo um pouco... Não sei onde isto se perdeu!
Nos anos 1980 a sequência se repetia. Em 1982 eu acabei alcançando um feito inédito na família: fui aprovado num concurso da Caixa Econômica Federal! Sonho de muitos na minha geração! Magicamente, já casado e com uma filhinha, fui chamado e o expediente continuava aquele da época do meu pai. Dava tempo pra fazer, inclusive, uma Faculdade! A história parecia ter o mesmo roteiro do tempo. Estávamos sempre com a família no almoço, tínhamos um período bom de descanso e depois retomávamos o trabalho, renovados e mais serenos...
Hoje, quarenta e poucos anos depois, o tempo ficou tão escasso... A política piorou bastante! As músicas, já não são como antes... Até as cidades do interior se tornaram frenéticas! Nada fecha mais pra descanso. Nada mais tem a ver com aquele encantamento de outrora! Até a Seleção brasileira tem sido duramente xingada! Não existem mais os Pelés, Rivelinos, Clodoaldos, Zagalos, enfim... O tempo agora tem peso de euro! Os jogadores são verdadeiras celebridades! As mercearias foram engolidas pelos supermercados, as bicicletas se tornaram transporte de classe média-alta; não é mais uma necessidade de mobilidade, mas um objeto do sonho de consumo de milhares de miseráveis assistidos pelas “bolsas” do engano!
Hoje, o homem não tem mais tempo na terra, ele deseja desesperadamente ir para Marte ou sei lá mais para onde! As guerras continuam, o meio ambiente é profundamente desrespeitado, as agências bancárias são mais concorridas que espetáculos de Rock... O meu pai, poeta e simples comerciante, já não está entre nós... A minha mãezinha já nem consegue lembrar quem somos... Por que será, afinal, que não podemos mais viver como QUANDO A GENTE TINHA TEMPO?...


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Inspiração

A comparação das épocas passada e presente, refletindo sobre a exiguidade de tempo e a utilização racional deste na vivência das comunidades atuais. Reminiscências familiares e aspectos relacionais que foram piorando à medida da passagem e mudanças nos conceitos de contemporaneidade.

Sobre a obra

É uma análise crítica dos momentos distintos vivenciados pelo autor, ao mesmo tempo em que se revela uma amarga saudade dos tempos idos e que marcaram profundamente!

Sobre o autor

Sou escritor, poeta, compositor e cantor e tenho deixado, de alguma maneira, as minhas digitais criativas marcadas nos anais da FENAE/CAIXA nos últimos 45 anos.

Autor(a): RAUL ANTONIO MARQUES DE OLIVEIRA ()

APCEF/PB