O Mistério da caixa

O Mistério da caixa

Mais um dia vem amanhecendo com o sol que vai, aos poucos, sorridente aquecendo com seus raios de pincéis, pintando tudo em luminosos tons pastéis, fazendo despertar o pequeno Arraial dos Rochedos de Algodão com a beleza e precisão de uma tela de Renoir.
O paradisíaco vilarejo, cheio de banhistas, turistas e surfistas em qualquer estação, tinha essa denominação porque ficava a beira-mar, cercado pelo paredão das pontiagudas rochas calcárias que, mescladas com o quartzo branco, transparente como cristal, proporcionavam diariamente o exuberante espetáculo natural.
Quando a aurora trazia o orvalho e quando o crepúsculo fechava a cortina do entardecer, era o momento do show acontecer.
O braço forte da maré de arrebentação vinha bater nos rochedos de algodão e as espumas das ondas levitavam em explosão, criando imensas e translúcidas bolhas gelatinosas que faziam o ar e os olhos dos turistas umedecerem , pela ingênua recordação da brincadeira de infância com as bolhas de sabão.
Era só uma meia dúzia de ruas, com destaque para a principal com seu pitoresco comércio local. Dentre as charmosas lojinhas, entre a Padaria Fofuras do Manoel e a Sorveteria Frescor e Mel, bem em frente a Banca de Jornal da Rafaela, ficava a irresistível loja amarela, onde a placa de madeira debruada em lindas letras de conchas amarfimzadas anunciava e convidava:

JOEL RELÍQUIAS E ANTIGUIDADES

Joel era uma espécie de Papai Noel do arraial, tinha a mesma opulência de corpo e amabilidade do mito de Natal, mas felizmente era bem real, recebia a todos com a mesma generosa proporção de felicidade, seja para preciosidades vender ou só amizades fazer. Ele seguia a alegre rotina do despertar, abria as beges e florais cortinas de popeline para o sol entrar pela vitrine. Dava corda, com a chave na sua gorducha mão, no antigo relógio cuco, modelo caçador alemão e na grande caixa de música, onde repousava Eliserina, a bailarina de louça, quase em tamanho natural de uma adolescente ainda menina , que era a atração principal para chamar os clientes em potencial.
Joel virava a placa avisando que o adorável antiquário e seu coração solitário estavam abertos e , quando o móbile de metal de pássaros orientais começava a tilintar no umbral da porta, anunciando clientes a chegar , era a hora de Eliserina trabalhar. Ele abria a caixa e assimétricos losangos espelhados se expandiam e do centro surgia a bailarina , como um desabrochar de uma flor de lótus num límpido espelho d’água a flutuar. Seu corpinho articulado de louça começava a rodopiar, cadenciado pela melodia dos clássicos, quase hinos, adaptados em sons de harpas e sinos, que retiniam de dentro dos ricos entalhes da caixa de jatobá, exalando um sutil aroma de sândalo que Ele não sabia aos fregueses a origem explicar.
O que lhe dava mesmo prazer era, todo dia, aos curiosos entreter contando a história da bailarina. Ela chegou um século atrás como presente para o décimo quarto aniversário de Marina, a filha loirinha do Embaixador Eliezer e sua esposa Constantina, que moravam na mansão da colina, conhecida por todos hoje, como o castelinho em ruína. O Embaixador, em uma de suas tantas viagens ao exterior, a réplica de sua filha menina com um artesão polonês encomendou. E, desde aquela época em que o presente chegou até hoje, ninguém, nem mesmo Joel, quando das ruínas do castelinho a resgatou e a restaurou, nunca desconfiou que Eliserina era um mágico ser de louça pensante.
O precioso biscuit tudo conseguia ver, ouvir e refletir. E eram muitas as questões que pulsavam em sua frágil mente de porcelana:
Porque será que para ela sempre havia um novo despertar e para os humanos, que também entravam em caixas, não era possível retornar?
Quem será que dava corda nos complexos mecanismos humanos e os faziam respirar, viver e amar?
Porque para alguns era permitido a corda longo tempo durar e para outros, bastava uma breve ausência de sorrisos, abraços e afagos para tudo desandar e bem depressa, a pele e a alma enrugar e num esquife se acabar?
Algumas de suas ponderações Ela conseguia obter explicações no ritual que Joel fazia quando chegava o final do dia, momento em que Ele virava novamente a placa e trocava os vinis da vitrola vintage, fazendo repousar na estante de adereços de carvalho marroquino, Mozart , Chopin e Bach e colocando no lugar o canto beneditino para ecoar. Acendia, com reverência, as sete velas do castiçal judaico de prata milenar e abria o enorme livro de capa aveludada, feita com pele de carneiro montanhês para ler, em voz alta e com respeitável altivez, as fantásticas histórias do REI dos reis. Depois de passar anos abandonada nas ruínas do castelinho e tendo visto todas as pessoas e os alicerces da mansão caírem ao chão corroídos pelo tempo, Ela era imensamente grata por tê-la feito renascer, exatamente como o HOMEM da história contada por Joel que fez Lázaro reviver.
E assim viviam felizes nessa mútua gratidão até que um dia...
veio a maldição.

Amanheceu e ninguém apareceu.

Joel não tinha rádio, celular e nem televisão, porque só gostava da comunicação com olho no olho e mão na mão, por isso não sabia que era a volta da pandemia, mas...Eliserina que presenciou um século atrás a devastação da colina, tremeu em agonia ao pressentir venenosos ventos vindos do oriente que vieram contaminar toda gente. Seu olhar vidrificado, incapaz de uma lágrima derramar, enterneceu ao testemunhar Joel, prostrado na dourada poltrona vitoriana ... dias, semanas , meses, anos a esperar o normal voltar. Então, Ele foi entristecendo até que seu generoso coração congelou. Vieram fantasmagóricos fantoches humanos de faces amordaçadas que dentro da caixa o colocou e levou. E, mais uma vez, hibernando em seus pensamentos e esperando outro novo tempo, Eliserina só ficou.
Sem a fluidez de um contratempo musical, uma silenciosa tríade de três longos anos se passaram até que um dia a alegria voltou para a bailarina afinal. Diante dela, surgiram duas pequenas mãozinhas espraiando a poeira da vitrine que, logo depois, deram lugar a um par de curiosos negros olhinhos compondo o rostinho de uma morena menina com traços relembrando Marina. Com determinação, a nova criança estilhaçou a vitrine e libertou a bailarina. Ela teve certeza que era seu novo talismã, quando a morena menina a colou no carrinho de rolimã e a levou sorridente para uma nova jornada através de outra ensolarada manhã. Eliserina também sorria internamente e continuava seu questionamento de mente de louça intermitente:
Quando será que o SENHOR DAS CHAVES vai voltar para dar corda nas caixas dos humanos e fazer a todos despertar?

Geo Cardoso.






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Inspiração

É uma crônica poetisada que foi criada em homenagem a todos que se foram com a pandemia

Sobre a obra

De tempos em tempos eu liberto meu imaginário em crônicas e aquarelas sobre algum tema que envolva meu presente ou passado, foi assim, sobre está crônica que fala sobre as perdas na pandemia, sempre mesclo a dissertação com rimas para dar mais dinâmica ao texto.

Sobre o autor

Sou o que se poderia chamar de um cronista e pintor amador e que, de tempos em tempos, deixa fluir o imaginário em textos e aquarela, os quais costumo chamar de: Delírios em Crônicas e Aquarela

Autor(a): GERVASIO CARDOSO PEREIRA JUNIOR (Geo Cardoso)

APCEF/BA