PETIT GÂTEAU

PETIT GÂTEAU



Patrícia abriu o cardápio e tomou conhecimento da falta de opções daquele restaurante. “Torta de limão”, pensei comigo. Patrícia sempre pedia torta de limão quando estava de mau humor; nunca me explicou o porquê. Paciente, esperei-a terminar. Peguei o cardápio e passei o olho com calma. De fato, nenhuma torta, apenas petit gâteau e sorvetes diversos. Ela se levantou, olhar pesado; sem me dizer nada, caminhou rumo ao estacionamento. Seu caminhar, sonoro. Humores dissonantes convergiam a cada passo. Alguns homens olhavam-na de canto, desejando-a. Pela janela a vi pegar o maço de cigarros no porta luvas do carro, e, encostada no capô, fumou e pensou. Depois, enjoada do cigarro e de si, voltou à mesa meio sem jeito. Alguns homens continuaram a olhá-la, menos discretos desta vez.
“Gostei do filme”, ela me disse.
“Daniel emagreceu uns vinte quilos para fazê-lo”.
“Ele deve amar muito o que faz, não?”.
“Ah, sem dúvida. Vem cá... Por que você chorou tanto?”.
“Achei que não tivesse notado”.
“Como não, chorei junto”.
“Pare de mentir... Logo você?”.
“Chorar faz bem, deixa a gente menos amargo”.
“Meu bem, você sabe, eu me emociono fácil”.
“Seu rosto ainda está inchado”, ela tirou um espelhinho da bolsa...
“Sabe, eu choro todos os dias, é o meu jeito de lidar com o que transborda. No caso do filme, chorei pela tragédia que foi a vida dele. Morreu no auge”.
“Acha que ele foi feliz?”.
“E quem é feliz o tempo todo? O cotidiano sufoca a gente”.
“Não sei. Penso que podemos prolongar a tal felicidade”.
“Como?”.
“Convivendo com pessoas interessantes, fazendo o que de fato gostamos, variando programas, desenvolvendo gostos, entende?”.
“A sua fala me fez lembrar de um amigo que vivia em função dos prazeres, fazia apenas o que gostava, típico bon vivant, hedonista. Coitado, não durou muito... Tão logo se deparou com o vazio daquele estilo de vida, sucumbiu miseravelmente”.
“Sei”.
“Veja só aquela mulher de vestido preto, como é elegante e segura de si”, Patrícia apontou, discretamente. Olhei de relance a tal coroa passando com pompa para o outro lado; vestia-se mal. Nada além de tédio e rancor. Patrícia não percebeu o meu desinteresse e continuou:
“O que acha dessas mulheres maduras? Confesso que me causam admiração”.
“Amadurecer não deixa de ser um modo de morrer”.
“Palavras... Palavras... O que pensa sobre o tédio?”.
“Penso que a maneira mais fácil de superá-lo é satisfazendo-o”.
“Casamentos estão fadados ao fracasso, então?”.
“A maioria. É só você ver a ascensão dos divórcios”.
“Então por que insistimos nisso?”.
“Pela margem de erro. A longevidade de alguns nos faz acreditar no impossível”.
“Por que viver se tudo não passa de ilusão?”.
“Há ilusões que são melhores do que qualquer coisa na vida”.
“Você é cínico!”, ela olhou para o lado; seu semblante caiu, subitamente.
“Está tudo bem?”.
“Não muito... Esses machos escrotos vivem me comendo com os olhos. Argh”.
“Quer que eu fale com eles?”.
“Não seja tolo. O que mudaria?”.
“Devem achar que não estamos juntos”.
“Você pode me beijar na frente deles, é indiferente, continuarão a me olhar, só que, talvez, de modo mais insolente”.
“Então vamos mudar de assunto”.
“Divide comigo a sobremesa, acho que não vou dar conta. Meu Deus, cadê o maldito garçom? Que merda de lugar!”.
“Quer ir embora?”.
“Não, deixa”.
“O que vai querer?”.
“Petit gâteau”.

O restaurante era o único aberto na região. Jd. da Saúde. Alta madrugada. Na mesa ao lado, um tipo esquisito comia com gula um spaghetti ao molho branco. Mastigava de modo rude, como se comesse pedras. Além de pedras, parecia comer os beiços, os dentes e o garfo. Ao vê-lo, Patrícia mudou de humor e passou a sorrir de modo afetado. Depois de terminar, o sujeito olhou para o lado e me viu fitando-o, incrédulo. Sentiu vergonha de si; estava com sobras de macarrão na barba espessa e algumas manchas de molho na gola da camisa. Perguntou ao garçom onde ficava o banheiro. Ele tinha a voz fina, desproporcional ao seu tamanho e peso. Era bem obeso e movia-se com certa dificuldade. Patrícia continuou inconveniente, rindo. Eu fiquei com pena daquele homem. Também não gostei quando ela pediu ao garçom para trocar os nossos talheres, sem motivo algum, apenas para exercer a sua arrogância. Constrangido, pedi licença para ir ao banheiro enquanto ela dava um esporro desnecessário no solícito garçom, que devia ganhar uma mixaria para aguentar aquela cena. Ela tinha atitudes desprezíveis quando não satisfeita e parecia estar me testando. O seu humor oscilava. Fiquei a pensar em como me livrar dela. Entrei no banheiro, puto. O homem gordo estava lá, chorando, com a cabeça escorada na parede. A mão direita sangrava. Havia marcas de sangue em uma das portas do banheiro. Ao me notar, disfarçou, foi até a pia e abriu a torneira. Lavou as mãos com urgência. Depois, moveu-se com dificuldade em direção à porta. Saiu do restaurante, trôpego, sem ser notado. Aparentemente, deixou de pagar a conta. Não por maldade, mas pelo abalo. O garçom continuava a ouvir as queixas de Patrícia...
Naquela noite, ela comeu a sobremesa com sua pose habitual: narizinho empinado, olhar aceso, pozinho branco nas bordas de cada narina... Algumas gotas de sangue no prato. Sem perceber seus vestígios, Patrícia parecia feliz.

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Inspiração

Experiências com relacionamentos amorosos desastrosos.

Sobre a obra

Obra inspirada nos contos do escritor beat William S. Burroughs.

Sobre o autor

O meu interesse por literatura surgiu no colegial, com as aulas inspiradas da professora Silvia, que me apresentou as obras da geração beat americana, dos poetas malditos franceses e dos modernistas e surrealistas brasileiros. Em 2020, fiquei em 2.º lugar na estadual do Talentos Fenae, categoria Contos e Crônicas. Espero ter mais sorte desta vez.

Autor(a): FELIPE THIAGO SANNA (Felipe Sanna)

APCEF/SP