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A última dose.
A última dose
O sujeito entra no bar com roupas antiquadas que ignoram o clima quente e úmido de Natal, mas isso é o que menos incomoda o barman. Ele sempre vinha sozinho, pedia um licor fino diferente toda vez. O de hoje, um Oranjebitter. É um pedido incomum, ainda mais para alguém que sempre deixa o copo intocado no fim da noite. Muitas vezes ele pedia outras coisas... bebidas para as mesas ao redor, carnes exóticas, se elas estivessem disponíveis, mas nunca bebidas para si mesmo.
Ficava ali... Em dias mais vazios, papeava com quem o atendia, em um português ainda carregado de sotaque. Falava dos tempos antigos, mas para cada ouvinte, a conversa era diferente...
O barman chama os dois garçons, aproveitando a noite de movimento fraco para puxar conversa com o mais experiente.
Do balcão, conseguiam ver as três mesas ocupadas, o que garantia alguns minutos de sossego, e quem sabe, uma pequena brincadeira com o novato:
— Seu cliente das quartas-feiras chegou!
O colega repara, enquanto puxa o pano de prato do ombro e alisa o balcão limpo, mostrando um vício da profissão.
— É… com seu velho caderninho e as roupas de cinquenta anos atrás.
O novato entra na conversa:
— Será que é advogado aposentado?
— Se for, deve ter estudado na mesma classe que Rui Barbosa! – Ri o barman.
— Ele me disse que trabalhou em um navio.
— Pra outro garçom falou que construiu linhas de trem.
— Já eu ouvi da boca dele que ele lutou na guerra...
O novato, com olhar incrédulo, tenta acompanhar e entender a conversa:
— Ah, ele era militar ou coisa assim? Deve ter lutado nos contestados de 1970.
— Não, ele falou de “antes da República”.
— Hahaha! Ele tinha bebido quantas esse dia?
Os veteranos olham para o novato e falam, quase juntos.
— Ele nunca bebe.
— Vocês nunca o viram beber, é isso?
Os outros se olham...
— Vigiamos nas noites mais calmas. Até nos sentamos com ele, conversamos... e ouvimos histórias. É sério, eu já vi gente maluca, mas este cara é um poço de histórias.
— E vocês sabem de onde ele é?
— Acho que é dos Países Baixos. Mas nunca perguntei. Naquele caderninho, eu já li algo parecido com inglês, e na Copa o vi torcer pela antiga Holanda… vestido de laranja e pagando rodadas das cervejas de lá. Mas ele não bebeu uma gota de nada.
Como se tivessem lhe dado um tapa, o rapaz se levanta, pega a bandeja com uma porção de bife acebolado que saía da cozinha naquela hora. Pede ao cozinheiro para marcar em seu nome e segue para a mesa onde está o senhor mergulhado em suas anotações.
— A porção que o senhor pediu...
O homem sequer levantou os olhos do caderno onde escrevia.
— Eu não pedi.
— Então desculpe o erro e aceite. É cortesia da casa.
Levantando o olhar, o homem mede o garçom.
— Novato?
— Sim.
— E você apostou com eles que descobre quem eu sou?
— Na verdade, não. Eu sei quem você é.
— Escritor, militar ou policial? Em qual das três você apostou?
— Nenhuma.
O velho deixa a caneta sobre a mesa e presta atenção ao rapaz. Um rosto comum, com as marcas da vida, mas nem sequer era um adulto ainda. Sob a camisa branca e fina, podia ver os traços de uma tatuagem e o corte de cabelo dizia que ele sabia se cuidar.
— Qual é o seu nome, garoto?
— Norberto. Beto, se preferir. Eu prefiro.
— Norberto... Não vejo um Norberto há uns bons anos!
— Sim, eu sei. A última vez que nos vimos, você ainda estava na segunda dose. O que aconteceu de lá para cá?
O velho fecha o caderno, começa a tremer e estende a mão para o rapaz.
— Eu achei mesmo que você...
— Me parecia com ele? Não, velho amigo, não me pareço. Depois que você abandonou a Companhia das Índias Ocidentais, ainda te vi mais uma vez. Eu era já um comandante. Você tinha uma casa de negócios no porto de Recife. Mas pela nossa diferença de idade, já era para você ter morrido há muitos anos. No entanto, parecia exatamente como no dia em que nos separamos. Lembrei de suas histórias, nas galés, onde você contava de uma maldição. Em seus sonhos, você repetia sem parar o nome da bruxa “Rowena”. Foi fácil achar, depois que voltei para a Europa… convencê-la a fazer o mesmo trato comigo foi mais difícil.
— Você encontrou Rowena?
— Sim, e consegui o mesmo trato para mim. Vida eterna, desde que...
— Nunca mais bebesse?
— Claro que não! Este não é o meu tabu, como não era meu grilhão à época. Ela exigiu algo mais precioso para mim que o prazer do álcool! Ela exigiu poder.
O velho dá de ombros, tentando ignorar o insulto.
— Eu gostava de humilhar as pessoas, gostava de me sentir acima delas e demonstrar poder.
— Você era a prepotência e arrogância. Um Imediato metido a Capitão…
— Então, ela exigiu de mim o poder do NÃO. De acordo com os SIM’s e NÃO’s ditos a cada pessoa, eu ganhava ou perdia um pouquinho de tempo. Imagino que você ainda guarde sua velha garrafa em casa...
O velho se lembra daquele vidro manchado e arranhado de tantas mudanças ao longo dos séculos.
— Talvez só reste uma dose, depois de o quê? Quatrocentos anos? Ela também me deu um presente. Uma ampulheta, cuja areia flui conforme os NÃO’s e SIM’s que digo.
— E o que você quer de mim, afinal?
— Sua última dose. Quero te dizer que você não está mais sozinho, em um mundo sem sentido que você já salvou vezes sem conta. Também lutei, inúmeras vezes, para que meu SIM ou NÃO tivesse valor além do que significava para mim. Quero olhar nos olhos de alguém que viu as mesmas desgraças que eu e não me sentir tão solitário em um mundo que já esqueceu suas tragédias, quase ao ponto de repeti-las.
— Você quer um parceiro de morte?
— E quando foi a última vez que estivemos realmente vivos?
Depois de alguns segundos, o velho pigarreia, seca os olhos úmidos e pega o copo. Sente seu aroma e se lembra das outras quatro doses. Ele as chamava de Grandes infortúnios, momentos que não queria ter vivido. Vira o licor e sente todas as notas impressionando seu paladar. O gosto de sua antiga terra, o cheiro do oceano, as matas em meio às quais cresceu, viveu, para as quais voltou, mas a que não mais pertencia. Engoliu a dose já sentindo a magia o abandonar.
— Nos vemos do outro lado?
O rapaz olhou para ele, também chorando, e respondeu:
— Não, velho amigo.
Naquele instante, uma ampulheta se quebrou, uma garrafa se partiu. Um relâmpago em uma noite de céu limpo deixou todo o quarteirão escuro.
Dois minutos depois, quando religaram os disjuntores e as luzes acenderam, o barman foi até a mesa, junto com o garçom, ambos incrédulos. O caderninho estava lá, com a caneta de marfim entalhado sobre ele. Em meio às páginas, o crachá do novato, junto com um bolo de notas altas.
Do outro lado da avenida, dois idosos se olham nos olhos, como não olharam ninguém desde que caíram naquela armadilha.
— Cinco minutos, ou cinco anos? Quanto tempo será que temos?
— E isso importa?
— Tem razão! Pra quem se negou a viver por tantos anos, qualquer segundo…
— É uma dádiva.
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Inspiração
Todos abrimos mão de algo para viver em sociedade.
Mas nem sempre, é um preço justo.
Agora que rediscutimos convulsivamente as instituições, acabamos por descobrir que somos prisioneiros de uma vida sem significados.
Para muito além de vícios e virtudes, precisamos discutir identidades e respeito. E ninguém deveria ser obrigado a abrir mão disso.
Sobre a obra
Tentei construir o conto de forma cênica, aplicando técnicas e revisões para que a cada linha, o leitor aprenda mais sobre a trama.
Tentei condensar o máximo e ao mesmo tempo, dar a cada detalhe um lugar especial na construção da história.
Sobre o autor
Escrevo e publico em plataformas digitais desde 2014.
Participo também de vídeos de resenhas e dicas de escrita no canal Papo de Autor, no YouTube.
Autor(a): PAULO ROQUE GOULART VALENTE (Roque Valente)
APCEF/SP
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