Maquineta de colher lembranças

Os pensamentos e as lembranças são realmente incríveis. Pude comprovar essa verdade ao reler o livro Cenas da Vida, de Rubem Alves. O texto “A maquineta de roubar pitangas” transportou-me para o passado em São João Del Rei. Pulava o muro da chácara do velho Sílvio e fartava-me de mangas, jabuticabas, goiabas e tudo o mais que viesse pela frente. Difícil era fugir desembestado quando surgia alguém da casa para espantar a gurizada. Lembrei-me das arapucas, dos alçapões e das “maldades puras” com rolinhas, tizius, papa-capins e, às vezes, o prêmio maior, um sabiá, pássaro preto ou chapinha. Feita a captura, eles iriam enfeitar as gaiolas, encher o viveiro, virar moeda de troca para outros sonhos ou simplesmente emprestar seu canto para os nossos ouvidos.
Jogava bola nas ruas, nos campinhos e no campo do Guarani, estádio que aos domingos brindava a vizinhança com partidas emocionantes, quando o “pau quebrava”, literalmente. As laranjas descascadas em fios pelo girar da engenhoca, os carrinhos de picolé, as tábuas de pirulitos... E nós, a molecada, espreitando o bar para saborear, ao final da partida, a farofa com o resto do molho de churrasco.
Na “praia” de Matosinhos, construía jangadas de tronco de bananeiras, pescava tilápias e nadava sob o sol escaldante. À noite, saía para a rua e, enquanto nossos pais conversavam nos bancos improvisados na calçada, a meninada se esbaldava no rouba-bandeira, na queimada e no bente altas. Quando o corpo não aguentava mais o cansaço, sentávamo-nos em volta do Seu Mário, para ouvir as histórias de assombração, que nos faziam morrer de medo, mas das quais ninguém abria mão. Até hoje, quando passo na Cavinha, uma rua erma do meu antigo bairro, escuto e vejo as mulas sem cabeça e os sacis dos tempos de criança.
Vejo-me com um balaio, vendendo as verduras de minha própria produção, e também em um vestido de minha prima, talco na cabeça e um instrumento improvisado. Era o Carnaval, enchendo a cidade de novidades. As moças ficavam alucinadas com a esperança de arranjar um namorado do Rio, de São Paulo ou BH. Os rapazes ficavam espreitando como cães de guarda, “protegendo” suas namoradas, irmãs e primas dos playboys, que estavam somente de passagem. Isso era o máximo para quem passava o resto do ano na modorra de existir. Eu, ainda muito menino, contentava-me com as matinês e os namoros platônicos. “Cai no poço”, versão antiga da “pera, uva ou maçã”, e armações para conseguir um simples beijo da futura namoradinha.
Viajo para as barraquinhas das igrejas, quando as músicas eram oferecidas no alto-falante, para as manhãs esportivas, as apresentações teatrais e musicais no Colégio São João.
Fogões a lenha, casa de vó, quintais, sonhos, infância. Vivências que ficaram para trás, com a certeza de terem sido bem vividas. E uma saudade louca de tempos que não voltarão jamais, mas que estarão para sempre em minha memória e coração.

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Inspiração

Após a leitura do livro Cenas da Vida, de Rubem Alves, transportei-me para a minha infância.

Sobre a obra

Deixando a emoção fluir e a saudade bater.

Sobre o autor

Nasci em São João Del Rei/MG e resido em Belo Horizonte desde os 13 anos. Minha fonte de inspiração são fatos reais, experiências próprias e dos outros e também várias “mentiras” e “meias verdades” criadas a partir do imaginário e de visões distorcidas das pessoas, fatos e situações. Tento responder às múltiplas inquietações do cotidiano humano.

Autor(a): JULIO CESAR TEIXEIRA (Júlio César Teixeira)

APCEF/MG