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XADREZ NA PRAÇA
XADREZ NA PRAÇA
Por muito tempo aquela praça, no centro da pequena cidade era um lugar tomado nos fins de tarde por uma horda de jogadores de xadrez. Cada jogador levava a tiracolo seu jogo de peças, tabuleiro e relógio de cadência de jogadas, instrumento valioso para evitar o prolongamento indefinido das partidas. Várias ilhas eram formadas nos bancos e nas mesas de cimento da praça e, em algumas delas havia, quase sempre, uma pequena platéia. Digo “pequena” porque uma determinada ilha chamava mais a atenção por aglomerar mais jogadores e expectadores que as demais , tanto, que se poderia classificá-la como a “principal”. O motivo para tal classificação? Bom, era lá onde sempre se alojava o “imbatível”. Tratava-se de um tipo tido como intragável e que definitivamente conseguia ter a aversão quase unânime dos freqüentadores. É que ele, em sua arrogância, trucidava quem quer que se aventurasse a enfrentá-lo. Eram partidas atrozes, humilhantes. Parecia até que ele conhecia todas as aberturas, todas as estratégias e táticas do meio-jogo e um acurado domínio dos finais de partida. O adversário, vencido, saía humilhado, cabisbaixo, envergonhado. Sem contar com o sorriso de escárnio do vencedor, seu olhar de desprezo, como a expressar sua suposta superioridade. E não era que os perdedores fossem despreparados: pelo contrário, quase todos estudavam com desvelo a teoria enxadrística tanto em livros especializados de autores russos, como em programas de computadores avançados e mesmo nas eficientes engines capazes de analisar jogadas em velocidade de milésimos de segundos! Finda a partida, o arrogante ganhador olhava em volta, encarava um a um os observadores, lançava um olhar de desdém para o perdedor da tarde, agrupava os trebelhos em seu estojo, recolhia o tabuleiro de napa e se retirava incontinenti. Aí, tudo se desfazia e a praça se esvaziava em um átimo.
Deve-se salientar que, em uma pracinha, de qualquer cidade, a ocorrência de algo inusitado tem a capacidade de fazer com que as pessoas se conglomerem em torno de algo em comum e se esse algo disser respeito a um sentimento compartilhado por todos, então não há dissidência: tudo se transforma em unanimidade.
Assim é que, em uma dessas tardes, surgiu um forasteiro sentado à mesa principal de duelo. Ninguém o viu chegar e abancar-se. Contudo, as peças de marfim já estavam devidamente assentadas em um tabuleiro de madeira de lei e na lateral direita deste estava postado um relógio digital para a cronometragem dos lances. E assim ficou o desafiante à espera de quem se dispusesse a enfrentá-lo. Naquela tarde, não houve dispersão em ilhotas. O foco era naquela mesa específica, naquela figura específica, taciturna, cuja simples presença era capaz de incutir um temor indizível em todos. Aquele forasteiro era certamente um mestre de xadrez ou, quem sabe, um Grande Mestre! Que primor aquelas peças! Que raridade aquele tabuleiro! Que fina tecnologia aquele relógio cronômetro! E, sobretudo, que porte de jogador! E que dizer do fato de que dispôs as peças negras para si? Sabe-se que, no jogo de xadrez, sair com as peças brancas é considerado uma vantagem fenomenal: o condutor das peças negras só iguala o jogo em uma série de lances e isso se jogar de modo acurado. E alguém ali observou: o forasteiro estava dando a saída para quem se dispusesse a enfrentá-lo! E, para garantir que assim fosse, dispôs o relógio do lado direito do tabuleiro pois essa é uma prerrogativa de quem conduz o exército negro. E, se todos já estavam contritos em seu receio de enfrentar o forasteiro, à observação referida, todos definitivamente se esquivaram de qualquer disputa.
Um burburinho se ouviu então. Um rumor começou a se disseminar pela multidão e todos abriram passagem para o abominável, o irascível demolidor de todas as tardes. E um misto de heroísmo e vingança se apossou de todos. Aquele verme iria enfrentar o forasteiro? Mas ele era, no momento, o único capaz de fazê-lo. Se ganhasse do forasteiro iria ressaltar seu desprezo por todos. Sairia como herói, mas um herói hediondo. Ou seria o forasteiro o redentor? Foram momentos de indizível tensão. O forasteiro, olhos fixos no tabuleiro, esperava, com paciência resignada, o primeiro lance de seu opositor. Um silêncio implacável tomou conta da platéia quando, já sentado à mesa onde estava o forasteiro, o campeão da praça moveu o peão do rei à sua quarta casa e acionou o relógio, à espera do lance do adversário. Peão na quarta casa do Rei! Então era isso! O odiado campeão das tardes escolheu um jogo aberto, violento, demolidor, como sempre fazia em seus embates. O forasteiro não se abalou e avançou seu peão do bispo da Dama ao seu quarto escaque, lance característico da perigosíssima Defesa Siciliana.
Uma luta encarniçada então se desenrolou, com cada um dos jogadores tentando uma supremacia de espaço assimétrica, com uma troca generalizada de peças e um avanço destemido dos peões já em uma fase tão incipiente da partida! E o que viu-se foi um espetáculo enxadrístico dantesco: os roques de lados opostos , os reis partindo céleres em direção ao centro do tabuleiro para um destemido combate corpo a corpo em busca de controle de território, nem que para isso fosse necessário sacrificar as restantes peças, e os peões, ah os peões em sua ânsia de avanço, ávidos por atingirem a oitava fileira, ao Éden, à promoção. Não havia tempo a perder. Afinal, como dizem os técnicos russos de xadrez “o tempo é de crucial importância na Siciliana!
A platéia, amontoada ao redor do tabuleiro, fazia um silêncio sepulcral. Só se ouviam mesmo as batidas no relógio e um ou outro barulho de peças quando se chocavam ou caíam inadvertidamente. Foi então que um sorriso assomou ao rosto do forasteiro quando este tomou uma torre do adversário sem nada em compensação. Foi um lance rápido, de longo alcance, em uma diagonal. A Dama do forasteiro fez a captura e foi postar-se no outro extremo do tabuleiro! Todos na platéia então se inquietaram. Será que agora seriam vingados pelo forasteiro? Perder uma peça importante toda inteira como uma torre era um dano dificilmente recuperável em uma partida comum, que dirá em uma Siciliana!
O abominável campeão da praça tornou-se uma esfinge: seus olhos estavam totalmente absortos no tabuleiro. E não foi sem assombro que a platéia viu o forasteiro tomar a outra torre do nefasto oponente e foi ao delírio em sua sede de vingança. Irremediavelmente perdido estava aquele arrogante! Foi então que o campeão da praça levantou a cabeça e olhou iracundo e desdenhoso para a platéia, levou seu peão de torre à oitava casa, promovendo-o e sem que nenhum dali tivesse percebido a sutileza do lance, fitou o forasteiro diretamente nos olhos e anunciou:
- Xeque Mate!
Todos, cabisbaixos, finalmente entenderam tudo. Nunca houvera falha na entrega das torres. Fôra, isso sim, dois sacrifícios magistrais para afastar a dama inimiga e abrir caminho para a promoção do peão. O forasteiro perdera a partida nobremente, iria embora e talvez jamais retornaria àquela praça mas aquele xeque mate ficaria para sempre encravado no coração da platéia.
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Inspiração
Essa ideia surgiu como um combate ao estereótipo.
Sobre a obra
A técnica aplicada foi usar de rapidez nas informações contidas em um conto e prender o leitor desde a primeira linha.
Sobre o autor
Sou um amante de Literatura e sou formado em Letras.
Autor(a): ARISTOTELES DE JESUS RODRIGUES CORREIA (ARISTÓTELES CORREIA)
APCEF/CE
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