O relatório

O Relatório

“Invadi um apartamento, comi a banana que estava lá e quase fui preso!” Esse foi, em resumo, o relatório apresentado à Divisão de Recursos Humanos pelo Agenor, empregado de uma agência do interior de Minas Gerais que foi à Matriz, em Brasília, fazer um treinamento na área de informática por ocasião do processo de informatização e interligação de pontos de venda, ocorrido por volta de 1993.
O relatório era uma exigência das normas internas que o empregado tinha que apresentar ao final de curso ou treinamento. E o que o Agenor deveria fazer, como previsto nas normas, era um resumo do que tinha sido o treinamento e uma avaliação do grau de aproveitamento da experiência no exercício de suas atividades diárias.
Sem entender bulhufas daquele relatório, que deveria ser documento a fazer parte das anotações da ficha funcional, o chefe da área tomou aquilo como brincadeira de mau gosto e resolveu passar tudo a limpo. Ligou para o empregado:
- Que negócio é esse, cara? Tá de gozação? O que vou anotar em sua ficha funcional? Que você invadiu, roubou, foi preso? Abro processo disciplinar contra você, por desacato à chefia, e aplico-lhe penalidade, seu engraçadinho! Nunca mais vai fazer outra dessa.
- Não, não, eu explico...
- Não tem que explicar nada, falou o chefe cada vez mais nervoso. Você tem que prestar contas do treinamento, dizer como foi o curso, o quanto aprendeu – parece que nada, né?! E se o indica para outros colegas.
- Cê doido, é? Indico não senhor. Passar o que eu passei, não quero nem pra inimigo!
Furioso, sempre estressado e ríspido com seus subordinados, o chefe desligou bruscamente o telefone resmungando: aquele caipira continua de brincadeira, e isso não vai ficar barato!
A verdade é que ele estava muito melindrado. O Agenor não era seu indicado para fazer o curso. Minutos depois, o telefone toca e a secretária passa para o chefe. É aquele empregado do relatório, retornando ligação.
- Não vou atender. Fale com ele que o assunto já está resolvido. Estou mandando, pelo malote, o termo de advertência para ele dar ciente e devolver.
O empregado ficou desatinado. Nunca teve uma falta. Trabalhava direitinho, sempre elogiado pelo gerente da agência. Por causa de seu jeito bem-humorado de tratar as pessoas, era um dos responsáveis pelo atendimento dos clientes, resolvendo-lhes as dúvidas e indagações, sempre com sorriso no rosto.
Atencioso com os clientes e muito brincalhão, o Agenor. Chamavam-no de Gegê! Zoava os colegas, nem o gerente escapava. Um dia, chegou à agência um sujeito de chapéu panamá e óculos escuros, perguntou pelo gerente, fez algumas indagações, saiu rapidamente e ficou um tempo do outro lado da rua, a observar o movimento. Gegê, aproveitando o fato de que toda agência temia visita inesperada de inspetor, virou para os colegas e disse: Estão vendo aquele cara lá? É inspetor. Aquele chapéu e aqueles óculos escuros – é para despistar e ver se estamos fazendo alguma coisa de errado. Conheço essa raça! Foi à mesa do gerente e o alertou: tem inspetor na área, meu chefe. Dá uma arrumada aí nos papéis, vê se tem alguma pendência, porque amanhã aquele sujeito, que ficou de butuca do outro lado da rua, vai voltar aqui sem chapéu e sem óculos, com uma pastinha na mão. Pode apostar.
No dia seguinte, bem cedo (o expediente externo começava às oito horas), entrou na agência um senhor, de terno, bem penteado e pasta na mão. Agenor correu à mesa do gerente e, com a mão à boca, como jogador em campo de futebol, falou em voz baixa: taí, é ele!
O gerente deixou imediatamente o que estava fazendo e dirigiu-se à recepção. Com um sorriso afável, mandou-o entrar, levando-o em direção à copa. Aceita um cafezinho, antes de começar os trabalhos? Chegou ontem à cidade? Como está a Filial? O senhor, estranhando aquela gentileza e sem entender aquelas perguntas:
- Não, Deus é mais! Eu moro aqui há quase três anos, sou casado e não tenho filial nenhuma, só três filhas, a quem considero muito. Deus é fiel!
- Então, o senhor não é inspetor? Não esteve aqui ontem, procurando por mim?
- Inspetor, retrucou o senhor, só se for das minhas ovelhas. Deve estar havendo algum engano. Sou pastor evangélico. Vim aqui para depositar esse dinheiro na caderneta de poupança, e foi abrindo a pasta cheia de notas de cruzeiros.
O gerente, que precisava aumentar os depósitos da agência, cresceu o olho naquela dinheirama, mas, envergonhado e numa atitude reparadora, conduziu-o ao caixa pelo lado de dentro do balcão, furando a fila que já se formava lá fora. O pastor fez o depósito e foi embora, agradecendo o cafezinho e a cordialidade de que foi alvo.
O gerente, depois de acompanhá-lo até a porta, volta com um sorriso amarelo na cara e vai à mesa do Agenor, que estava ali fingindo preencher uma ficha de abertura de conta. Sem deixar os clientes perceberem do que se tratava:
- Você de novo, Gegê? Me mata de susto e de vergonha, sua peste! E, em tom de desameaça:
- Vou colocar você à disposição da Filial.
- Oi, chefinho, não me leve a mal. Só quis lembrar o dia de ontem que passou em branco: primeiro de abril, chefinho! E virando para os colegas:
- Ele caiu!...
E todos caíram na gargalhada – não se sabe se de alívio ou da sem-graceza do gerente.
Mas agora, a coisa era outra. O chefe da Filial não era o gerente bonzinho da agência. Enjoado que só. Nada escapava do seu mau-humor. A irreverência podia custar caro ao Agenor. Ele estava preocupado. Via-se diante de uma situação que lhe retiraria a chance de ocupar, por um bom tempo, qualquer função de confiança. Pensou em pedir ao gerente que falasse com ele, explicar tudo explicadinho. Mas tinha quase certeza que o gerente não iria meter-se nisso. Poderia indispor-se com aquele ferrinho de dentista. Ir pessoalmente a Belo Horizonte e tentar falar com o chefe?.... Não vai me receber. Escrever outro relatório?... Pode engrossar o caldo.
Gegê não dormiu à noite. Chegou à agência mais cedo do que de costume, tomou coragem e sentou-se à frente da mesa do gerente para esperá-lo e pedir sua intervenção no caso.
- Cê tá brincando com fogo, Gegê. Mas vou te ajudar: não dê o ciente no termo de advertência e devolva-o explicando direitinho a lascada em que você se meteu e que prejudicou a sua participação no curso. Eu faço o encaminhamento do relatório.
O que escreveu Agenor é o que mais ou menos aqui se reconta. Ele chegou em Brasília na manhã do dia 06 de julho. Nunca tinha andado de avião. Quando aquele bicho gigante começou a subir, balançando e trepidando no ar, Agenor só conseguiu ficar tranquilo com a lembrança de que todos de sua casa estariam rezando por ele, como prometeram no vai com Deus de despedida. Não conhecia a cidade e tudo o surpreendia e encantava. Estava mesmo embasbacado.
No aeroporto, tomou um táxi, enfiou a mão na algibeira e retirou um papelzinho, onde fora anotado, por sua mãe, o endereço de onde ia ficar hospedado: Bloco D da 210 Sul, no apartamento de seu tio, irmão de sua mãe. Aquele endereço não lhe dizia nada. O motorista tocou por aquelas avenidas largas, arborizadas, tudo plano. Chegaram rapidamente.
Agenor apeou do táxi e foi falar com o porteiro do prédio. Bom dia, moço! E, tirando de novo o papelzinho do bolso, perguntou: o meu tio deixou a chave do apartamento 503? Vou passar dois dias com ele. Ah, pois não, aqui está a chave. O porteiro gentilmente acompanhou-o até o elevador, apertou o botão e ele subiu. Abriu com dificuldade o apartamento, fechado com chave tripla. Entrou, puxando uma pequena mala e jogou-se no sofá da sala para se refazer das emoções da viagem. Passou por uma soneca e acordou assustado consultando o relógio. E com fome.
O curso começaria às 13h e não dava mais tempo para sair procurando boteco em meio àquela quantidade de blocos. Viu uma penca de bananas na fruteira em cima do armário da cozinha e pensou: se a fome apertar mais, como essas bananas. Meu tio não vai brigar comigo – gente boa ele! E a fome apertou. O jeito foi apelar para as bananas do tio. Comeu meia dúzia delas, juntou uns papéis e uma caneta que retirou da mala, trocou de roupa e desceu para o térreo, procurando um táxi que o levasse até o local do curso.
O porteiro, bastante solícito, pegou a chave com ele e foi logo se oferecendo para telefonar para a central de táxis. Enquanto isso, Agenor admirava um pé de ipê todo florido já começando a derramar suas pétalas para enfeitar de roxo o chão.
Lá pelas 19h, terminada a chatice do primeiro dia do curso, Agenor, que não nasceu pra isso (meu negócio é agência, dizia ele) pega um táxi de volta para o apartamento. Mais uma vez, tirando o papelzinho do bolso, eu quero ir para o bloco D da 210 Sul. Esquisitos esses endereços aqui, não é, moço? Qual é mesmo sua graça? Bloco, eixo, eixinho, eixão... não é mesmo esquisito, seu Manoel? Na minha terra tem bairro e rua e cada rua tem número. Eixo lá é de caminhão ou de carro de boi e bloco é de pedra, de granito ou de concreto. Pode ser mais inteligente, como você está explicando, mas é muito diferente de todos os lugares.
Desceu do táxi, pagou e agradeceu ao motorista que lhe deu um cartão com telefone. Se precisar é só ligar. Achou a entrada do prédio diferente e o porteiro já era outro. Não prestei bem atenção de manhã, pensou ele. E o porteiro, mudança de turno, deve ser. Ainda não me acostumei. Pediu a chave ao porteiro que lhe perguntou o senhor é o seu Agenor? Muito prazer. O seu tio deixou, sim, a chave do apartamento pra você. A chave não era a mesma. Subiu desconfiado e, ao entrar, não viu a sua mala nem a outra meia dúzia de bananas que deixou.
Resolveu descer e perguntar ao porteiro se seu tio já havia chegado do trabalho. Não, não chegou ainda, disse o porteiro. Uai, sô! Será que não chegou ou deu uma saidinha? Geralmente chega mais tarde, disse o porteiro. Uai, então quem levou minha mala? Não está lá, sô. Alguém deve ter entrado no apartamento! Vê lá direitinho, o senhor tá chegando agora e o porteiro da manhã me passou a chave, recomendando entregá-la só para o senhor: Agenor dos Santos Oliveira, não é esse o nome do senhor?
Agenor pensou um pouco e perguntou: Que bloco é esse? Bloco D, respondeu o porteiro. Consultou novamente o papelzinho que carregava no bolso da frente. É, tá aqui, sô: bloco D. Que diacho de confusão é essa? E, agora?
De repente, enquanto pensava no que fazer, ouviu a sirene de um carro da polícia entrando na quadra. Parou na porta de um prédio próximo. Agenor virou para o porteiro: tem confusão ali. O porteiro, curioso, aproximou-se para saber do que se tratava. Um rapaz que passava foi logo anunciando: uma invasão em apartamento ali no bloco B. Invadiram o apartamento da mulher, deixaram uma mala, roupa jogada no sofá e casca de bananas em cima da pia. Absurdo! Hoje em dia ninguém respeita ninguém. Imagina: o sujeito entra, toma banho, troca de roupa e ainda, para rir da cara da vítima, come as frutas e deixa as cascas lá. É verdade, disse Agenor, ninguém respeita ninguém!
Mala, banho, muda de roupa jogada no sofá... as bananas, a casca em cima da pia...meu Deus, é a minha mala! E agora? Viche Maria! Correu para lá. Uma mulher esbraveja, tentando explicar à polícia, acionada pelo síndico. Um reboliço.
Agenor dirigiu-se à portaria daquele prédio e começou a reconhecer alguns detalhes. A posição da portaria e a entrada eram parecidas com o prédio, onde chegara de manhã. Será, meu Deus? Não tô acreditando! O pé de ipê! Nossa, tô roubado. O porteiro de lá saiu de fininho e falou com o síndico que acompanhava, ao lado do policial, o desenrolar dos fatos: aquele sujeito ali tá muito suspeito. Pode ser ele.
Agenor continuava a observar os detalhes do prédio e, cada vez mais aumentava a certeza de que era ali que desembarcara. O policial aproxima-se de Agenor: boa noite, senhor. Os documentos, por favor. Agenor enfia a mão no bolso e nada de documento. Tinha ficado lá no outro apartamento. Posso buscá-lo? Não, o senhor está preso e até pode ir lá, mas sob escolta, tá entendendo? Sim, senhor, tudo bem – falou Agenor. Sou sujeito honesto, do interior de Minas, vim aqui fazer um curso. É o que todos dizem. Estamos cansados de ouvir essa conversa. O senhor pega os documentos e vai se explicar na delegacia. Foi, de camburão.
Na delegacia, o delegado fez o interrogatório e virou para o Agenor: você vai ter que provar que a banana é do seu tio, moleque! Antes de concluir a tomada de depoimento, um homem entra correndo na delegacia: meu sobrinho não vai ser preso. Ele está hospedado comigo e tudo não passou de uma incrível confusão e, entrando na sala do delegado: Agenor, você errou de apartamento, cara. Entrou no bloco B em vez de D. Então o taxista de hoje cedo tava surdo, disse ele, tirando do bolso o papelzinho: olha aqui, bloco D da 210 Sul. Aliviado, Agenor abraça o tio: bênção, meu tio. Nessa encrenca toda, nem te cumprimentei. Desculpe.
A pretensa vítima, que acompanhava o depoimento, conhecia o tio do Agenor. E tudo foi explicado. Agenor, em companhia do tio, foi buscar a mala. Pediram desculpas pelo ocorrido e foram dispensados de devolver as bananas.
Quase foi preso e agora estava diante da contingência de ter uma advertência anotada em sua ficha funcional. O tio que iria salvá-lo agora seria o gerente da agência.
Digníssimo Chefe, concluiu ele no relatório, apelo para sua compreensão. Não tive cabeça para frequentar o segundo dia do curso. Não sei o que lá se passou. Assim, ante o acima exposto, ouso perguntar-lhe, “data multissima vênia”: que outra coisa poderia eu ter escrito no relatório, além do fato de que invadi um apartamento, comi as bananas que estavam lá e, graças ao anjo da guarda do meu tio, escapei da prisão?

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Inspiração

A vivência na Caixa.

Sobre a obra

Uma história sobre um caso ocorrido no dia-a-dia da Caixa.

Sobre o autor

Um pai/avó dedicado e escritor frustrado nas horas vagas.

Autor(a): WAGNER LUIS PINTO (Lewis Ponti Gruna)

APCEF/DF