Talentos

O Conto de São Bento dos Milagres

Me chamo Bento. Sim, mainha me deu esse nome para ser igual dessa cidade onde moro, São Bento dos Milagres. Sou um garçom de 25 anos, trabalhando em uma budega de beira de estrada, entre Bahia e Piauí. Moro no andar de cima do bar, porque o dono, Seu Charles, me paga um pouco mais pra eu morar aqui e tomar conta.
Só tinha uns três gatos pingados espalhados pelo bar, pedindo para ouvir Reginaldo Rossi enquanto chora igual menino. Foi aí que ele chegou. Um homem grande e alto, beirando aos seus 40 anos. Muitos pelos no corpo, sobrancelha cheia e barba grande. Parece aqueles gordos que levanta pedra. Ele veio até mim. Pensei que ia pedir um daqueles uísques caros.
- Me dá uma dose da melhor pinga que você tiver, por favor. – me falou já puxando a cadeira e sentando naquela mesa enfeitada com um vaso de mandacaru.
Arregalei os olhos. Me espantei com o pedido dele. Um homem de aparência tão elegante bebendo igual o povo daqui. Ele percebeu minha surpresa e deu aqueles sorrisos de canto de boca.
- O que foi? Não servem pinga aqui? – falou parecendo mangar de mim.
Caba invocado! Tava achando que era melhor que eu. Coloquei a pinga no copo. Levei na mesa dele. Desconfiado como sou, pensei ser algum daqueles “serial killer” que se vê nos filmes. Eu nem percebi quando estava perdido conversando com minha cachola.
- Esse copo é para mim? Se for, gostaria de beber logo. – ele não tirava aqueles olhões de mim, como se soubesse que tava pensando nele. Tinha pacto com o “cão” e conseguia ler minha cachola!
Não fui com a cara dele nem ele com a minha. Entreguei o copo a ele e antes que eu voltasse para trás do balcão, ele já havia tomado toda a dose de pinga.
Tirou da mochila um daqueles computadores finos. Colocou na mesa e começou a apertar aqueles botões mais rápido que um jaguatirica. Vi os três únicos clientes se ajuntarem numa mesa mais do canto e começar a cochichar que nem Dona Matilde, que fica o dia todo na janela olhando a vida dos outros pra fazer mexerico. Seu Tião, como sempre, pediu para pendurar a conta. Esse paga. A esposa dele, Dona Nora, não deixa ele ficar devendo nada. É a diretora da escolinha daqui e luta por aqueles moleques igual onça defendendo os filhotes. Mulher retada. Queria que fosse a prefeita daqui.
Agora era só eu e aquele caba invocado. Ele apertava sem parar aqueles botões cheio de letra do alfabeto, nem olhava mais pra mim graças ao bom Senhor. Me viro pra pegar o pano de limpar as mesas. Quando me viro de volta ele já tava atrás de mim. Tomei um susto tão grande que tropecei por cima do balcão, quebrei os copos e quase furo o bucho. Mas meu anjo da guarda é forte. Lá estava eu, inteirinho. O homem perguntou se eu precisava de ajuda. Eu me apoiei no balcão e levantei. Nem conseguia falar de tanto medo.
- Aqui pela bebida. E seus dez por cento. E vou deixar um pouco a mais pelo inconveniente. Acho que você se assustou comigo e acabou se acidentando. Mas se precisar de mim, estou naquela pensão aqui na frente. – falou olhando pra mim de novo. Eu já via a hora dele se transformar e me devorar. Mas ele botou o dinheiro no balcão e saiu.
Fechei o bar. Liguei pro padre Damião. Chamei ele pra benzer aqui. Ele disse que ia aparecer de manhã. Me falou pra eu dormir fora, levando o crucifixo que minha vó me deu. Aqui só tem quatro lugares nas redondezas: essa budega aqui, o posto de gasolina, a pensão de Dona Matilde e a casa de Dona Magnólia.
Lá estava eu, no caminho para a casa de Dona Magnólia, com o crucifixo na mão. Tava indo pra lá falar com Maria, a moça que amo. Entro lá no “Campo Florido”. Tão encucados com esse nome doido? Pois é. Magnólia, Rosa, Margarida, Petúnia, Camélia, Violeta... as meninas tudo de lá tem nome de flor. É por isso o nome. Sou recebido pela própria Dona Magnólia. Uma mulher bonita, alta e pomposa parecendo rainha. Hoje tinha uma flor lilás no cabelo, que só não era mais chamativo que aquele vestido dela, dourado e cheio de purpurina. Ela pega meu braço de forma educada e me leva até o balcão. A garçonete hoje é Rosa. Elas revezam todo dia no bar. Rosa é a mais chegada de minha doce Maria. Dona Magnólia logo pede uma bebida em nome da casa.
- Rosinha meu bem, vê uma dose para o Bentinho, por favor! Ele parece ter tido um dia bem cansativo. – ela falou olhando pro quarto de Maria.
Dona Magnólia se levanta, e diz olhando pra mim: - Se divirta meu bem. A casa é sua.
Depois ouço ela gritar no caminho até o quarto de Maria: - Maria Sem Vergonha, Bentinho chegou pra te ver.
Por que todo mundo fica chamando minha Maria assim? Isso lá é nome de mulher direita? Ela não tá aqui por opção! Família pobre, acabou aqui. Mas vou tirar ela dessa vida.
O lugar tava cheio, muito homem descarado que veio para cá escondido da esposa. Do quarto de Maria sai um homem ainda abotoando a camisa. Não consigo ver muito bem a cara dele. Não é possível que minha Maria tivesse atendendo justo aquele caba, enviado do “cão”. Quando me dou conta, Maria já tá na minha frente, formosa que só com seu decote vermelho e batom vibrante. Ela parecia brava quando falou comigo.
- Bento, seu cabeça dura. Já disse a você pra não vim aqui. Eu não disse que ia passar na sua casa amanhã? Olha como tá aqui hoje! Me espera amanhã que eu proseio a vontade com você. E fazemos outras coisas também.
Maria já ia me largando pra voltar para o quarto dela, mas seguro a mão dela antes dela ir embora de vez. Aperto com a outra mão o crucifixo que já tava no meu pescoço.
- Minha flor, espera. Eu não posso voltar agora. Tem um...lobisomem aqui perto. Ele tá lá na pensão de Dona Matilde. O padre disse pra eu não voltar pra casa. De manhã ele vai benzer o lugar todo.
Minha flor nunca acreditou nessas coisas. Disse que é tudo coisa de minha cuca, que eu vivia igual conto de cordel. Mas hoje ela tava séria. Pela primeira vez ela não mangou de mim por conta de assombração. Me beijou e disse: - Meu amor, olha! Toma aqui esse dinheiro e pega a van pra cidade. A última é daqui a meia hora. Lá tem um monte de pousadinha barata. Eu tenho que voltar a trabalhar.
E lá se foi Maria, de volta pro quarto pra atender o outro cliente. Eu não tinha muito o que fazer. Saí de lá e fui pro ponto esperar a van. Atento pro meio do mato pra aquele lobisomem não avançar em mim. Vi dois olhos vermelhos me olhando. Começo a rezar segurando meu crucifixo, até a van chegar. Subo nela tão rápido que chega tropeço. Só tinha eu e mais um rapaz bêbado dormindo. Eu tava de olho na janela, vai que o lobisomem estivesse me seguindo...
Finalmente chego na centro da cidade. Um praça, uma capela, e um monte de boteco ao redor. A pousadinha fica em frente a praça e do lado da casa de Dona Nora e Seu Tião. Ele, pra variar, tava dormindo bêbado abraçado em uma árvore. Acho que Dona Nora não viu ainda. Assim que entro no quarto, me jogo na cama e tento pregar os olhos, mas não consigo. Fico vendo os dentes afiados e os olhos vermelhos daquele lobisomem em cima de mim...bom, eu não vi ele se transformar ainda, mas pelas histórias que minha vó me contava, lobisomem é tudo assim. E não quero ver um de perto.
Coloco uma cadeira encostada na janela e me sento nela. Olho a rua toda. É lua cheia. Tranquei a porta dando duas voltas na chave para garantir. Lá estava eu, olhando a rua que era pra estar calma. Primeiro, vejo Dona Magnólia e Rosa passando na rua tarde da noite conversando com um homem de chapéu. Podia ser cliente delas, mas porque por essas bandas? Fico olhando até as duas sumir. Depois passa Seu Tião caindo das pernas. Acabou dormindo na praça abraçando uma garrafa vazia de cachaça. Dona Nora passa logo depois. Ela tinha um monte de papel na mão. Só que passou direto pela praça e virou a rua sumindo das vistas.
Eu pego o café que estava na mesinha do balcão e bebo. Quando me sento na cadeira de novo, meus olhos bate logo na capela. O padre Damião aparece e encontra uma moça na porta. Ele leva ela para os fundos da capela. Valha-me Cristo! Padre sem vergonha! Dona Matilde que tava certa! E falando no diabo, lá vem a velha fuxiqueira. A língua é tão grande que dizem que é maior que a estrada até a cidade. Ela vive dizendo que Maria tem caso com o padre. Será que aquela moça que saiu com o padre é Maria?
Levanto da cadeira na mesma hora, mas a chave cai debaixo da cama. Ouço a voz de Dona Matilde conversando com o lobisomem aqui bem perto da minha janela. Corro pra ouvir o que eles tavam falando, mas quando tô perto da janela, os dois já se escafederam.
Começo a ouvir gente andando na frente da minha porta. Agora sei que a velha fuxiqueira fez um pacto com o enviado do “cão” pra me entregar a ele. Os dois tão aí fora. Olho pela janela e já sei que não vou conseguir pular dali. Dois andares de altura e já tô com vista turva. Mas é altura ou ser comido por lobisomem. Pego o crucifixo, ponho no pescoço e aperto ele. Peço força a Deus pra encarar dois medo de vez e fico todo arrepiado. O pé direito já tá na janela, quando vejo que mais um homem se junta ao padre e a moça. E aquele conheço bem. É meu patrão, Seu Charles. Mas o que um homem da cidade grande tá fazendo aqui na praça uma hora dessa da madrugada? Aí tem coisa.
Ponho o outro pé na janela e começo a andar pela beira. A cada passo, rezo mais. Se eu cair daqui, fico esmagado igual polenta. Já tô quase perto de descer pra rua. Mais uns dez passos e vou embora daqui. Aí ouvi a janela abrindo. Na cara que aparece pela janela, só consigo notar aquelas sobrancelhas grandes e aquela barba enorme. O susto foi tão grande que tropeço e caio com os quarto no chão. Levanto e tento correr, quando dou de cara com ela: minha amada, Maria Sem Vergonha. E vendo ela com aqueles dois homens juntos dela, entendi o porquê daquele nome.
Seu Charles olhou bravo pra mim: - Bento, você devia estar cuidando do bar. Eu te pago muito bem para cuidar dali. O que faz aqui?
Meus pensamentos tava tudo confuso agora. Não sabia pra quem perguntar o que. Mas fui ver Maria. Ela não parecia muito feliz de me ver. Eu pego na mão de Maria. Ela tira na mesma hora. Eu não conseguia entender mais nada. O padre Damião pega no meu ombro, dizendo pra ir pro bar que ele ia benzer tudo lá. Depois, olhou pro meu patrão: - Charles, eu pedi pra ele esperar fora do bar, tem um lobisomem na cidade.
Seu Charles agora tava calmo. Eu tava indo com eles, quando Dona Nora aparece na rua logo a frente. Ela tava com o delegado Hilton, um caba mais frouxo que eu. Ela olhava pro delegado furiosa: - Anda delegado, prenda esses três agora. Ou tem algum motivo pra não querer fazer isso? E você Bento, passe pra cá agora!
Enquanto isso, Maria apertou minha mão e encostou o rosto no meu ombro. Eu via o delegado se tremendo enquanto segurava a arma dele. Dona Nora gritava pra eu sair dali, mas eu só tinha olhos pra Maria. Dona Nora pegou a arma da mão do delegado e apontou pra nós, brava: - Deixem o Bento ir. Maria, eu já sei de tudo. E esse safado aqui não vai ajudar você.
Eu tava leso igual uma preguiça, pensando se Dona Nora era da polícia. Logo depois senti uma coisa fria e afiada no meu pescoço, parecendo garra de lobisomem. Me mijei todinho. Fechei os olhos e comecei a rezar porque as pernas não mexiam. Aí ouvi a voz de Dona Matilde e do lobisomem. Foi aí que notei que não era o lobisomem que tava agarrando meu pescoço. Quando olho pra baixo, vejo uma faca na mão do padre agarrando meu pescoço. O lobisomem também tinha uma arma. Minha cuca deu nó já não estava entendendo mais nada.
- Solte o rapaz, Damião. Vocês três não vão fugir daqui. As estradas estão cercadas. Ou se entregam, ou vão aumentar ainda mais os anos de prisão. – o lobisomem falou pro padre.
Seu Charles tirou uma arma e apontou pro delegado. O caba frouxo desmaiou na hora de medo. Quando Seu Charles ia atirar em Dona Nora, Seu Tião apaga ele com uma garrafada bem dada na cabeça. Depois diz, com voz embolada, que ninguém ia apontar arma pra amada dele. O padre já tava perdendo a paciência e ia cortar minha goela fora quando ouvi a voz de Dona Magnólia por trás dele: - Machuca ele, seu padre sem vergonha e vou estourar teus miolos com essa arma.
O padre me soltou e Maria tentou correr. Dona Matilde acerta Maria com uma mão pesada que doeu só de olhar. Maria cai no chão e Dona Matilde olha pra ela: - Isso é por você espalhar por aí que tenho língua grande.
O caba que eu pensei que era lobisomem, é o agente Vilela. Ele algemou os quatro golpistas e levou na viatura. Agora os quatro vai tudo ver o sol nascer quadrado. Não é que Dona Matilde tava certa!?
No fim das contas, eu fui usado igual um banana pelos três. Eles queriam um tesouro dos tempos do cangaço que tava escondido no bar. Seu Charles comprou o bar já sabendo do tesouro. Mas ele não sabia o que era ou onde tava escondido. Aí, se juntou com o padre Damião pra pegar informação na cidade desse tesouro. O padre tinha caso com Dona Magnólia a mais de três anos. Vivia dizendo que ia largar a batina e se casar com ela. Mas ela, esperta que só, descobriu a safadeza do padre uns meses atrás, principalmente depois que viu ele atrás da capela com quatro moças de uma vez só. Aí ela procurou Dona Nora pra desmascarar o padre, e descobriram que Seu Charles tava metido nisso também. Depois disso, Seu Charles foi embora da cidade, e o padre parou de ver Dona Magnólia. Ela desconfiou que tinha uma caguete trabalhando pra ela. Com ajuda de Rosa, Dona Magnólia descobriu que Maria estava roubando ela, com orientações de Seu Charles de como fazer isso. Em troca disso, ela ia contar tudo que acontecia na cidade pra ele e o padre. E que lugar melhor que um bordel pra saber de tudo? Então, os três se aliaram pra pegar esse tal de tesouro. Seu Charles me contratou pra ser preso no lugar dele quando achasse o tesouro. Padre Damião me manteve na linha usando minha fé e meu medo de assombração. E Maria nunca me amou. Me usou pra saber tudo que eu conversava com o padre e o patrão. Assim, ela ia poder trair os dois, pegar o tesouro e fugir com o delegado Hilton. Esse aqui é mais esperto que todos juntos. Ele fingiu desmaiar quando descobriram que ele tava metido nisso, com medo do agente Vilela. O caba devia ser ator de novela.
Dona Nora tinha ido na cidade grande uns dias atrás procurar a polícia e contar tudo que sabia. Na hora de desmascarar todo mundo, foi lá na delegacia buscar o delegado safado pra ele não fugir. Acertou com Dona Matilde de receber o agente Vilela até ele conseguir prova pra prender aqueles três. Agora, ela tem meu respeito. Todo domingo passo na pensão pra prosear com ela. Dona Nora me deu um emprego na escolinha. E disse que tenho potencial pra crescer mais. Até topou a ideia de se candidatar pra prefeita daqui. Seu Tião tomou tino e agora só bebe fim de semana. Dona Magnólia e Rosa voltaram pra sua vida, agora famosas na cidade. E o agente Vilela resolveu virar delegado da cidade. Ele é um caba tão legal que sempre passa lá em casa nas folgas dele pra gente jogar canastra e tomar umas doses. O tesouro? Isso é causo pra outra prosa!

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Inspiração

A literatura de cordel sempre me encantou. Admiro os personagens com características tipicamente nordestinas. Variam de historias sombrias até aquelas com toque de humor. Desde pessoas reais até criaturas fantásticas da mitologia nordestina. Resolvi misturar tudo isso numa história de mistério a qual nada é realmente o que parece ser.

Sobre a obra

Usando um estilo de conto em primeira pessoa, utilizei elementos de romances policiais e terror, tendo como base as historias de cordel. A escrita do texto utiliza linguagem informal, para aproximar o protagonista do leitor. Tudo se passa numa pequena cidade fictícia nordestina, com personagens feitos com base em pessoas reais do nosso dia a dia.

Sobre o autor

Sou formado em Produção Multimídia. Em relação a artes manuais, trabalho com artesanato em EVA e biscuit e cenários em miniatura. Gosto de desenhar, em especial, no estilo HQs. Sou cosplayer. Também faço arte digital, que envolve games, animação e 3D de uma forma geral. Gosto de criar personagens desde sua concepção até levá-lo a mídia final.

Autor(a): ANTONIO MIGUEL MACEDO FIGUEIREDO (Miguel Mario)

APCEF/BA