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A MENINA DO VIADUTO

A MENINA DO VIADUTO

Narcisa perambula sob o viaduto desfilando seus trapos por entre olhares críticos de pessoas que atravessavam a rua na direção das lojas e do restaurante de luxo ali próximo. Sua mãe está sentada ao lado de uma coluna, mas não liga para o que ela faz. Antes, gritava para que não se aproximasse da rua, onde os carros passam em alta velocidade, mas com o passar do tempo deixou de fazê-lo. Pela fragilidade de seu corpo, pode-se ver que ela está muito debilitada e não sente mais interesse pelo que a filha faz.
A garota não mais procura a mãe, pois sabe que nada tem a receber dela. Com os seus cinco anos, já aprendeu que no lugar em que vive é preciso ser esperta para conseguir alcançar o dia seguinte. Os adultos que ocupam o mesmo espaço não se preocupam com os demais e a sobrevivência depende da maneira como conseguem obter comida e água. No inverno, com as constantes chuvas, todos procuram aparar a água que cai do viaduto, guardando em vasilhames recolhidos nos depósitos de lixo. No verão, os adultos vão até uma praça distante e pegam água nas torneiras. Narcisa já aprendeu a abastecer seu recanto sem a ajuda da mãe.
Quando quer falar com alguém, procura outras crianças da mesma idade e juntas caminham de um lado para outro, observando os que entram e saem das lojas e lanchonetes. Elas imaginam o que poderia estar acontecendo dentro de cada estabelecimento e tecem os mais diferentes comentários. Dentre as colegas, Mariazinha é a mais tagarela e expõe os seus sonhos como se fossem uma realidade que ia aos poucos se aproximando.
? Quando eu for do tamanho daquela mulher ? diz apontando para uma jovem que entra numa loja de confecções ? vou comprar um vestido bonito para mim. Todo azul com umas estrelinhas brancas. Vou ficar parecendo o céu durante a noite.
? Pois eu ? diz outra ? vou passar o dia comendo pão com queijo, do jeito daquele que uma mulher me deu uma vez.
Cada uma diz o que sonha fazer quando crescer. Eram sonhos pequenos, mas imensos para o universo de suas necessidades, principalmente para a barriga que ultimamente só sabia o que era roncar.
? Eu quero um carro ? diz outra, apontando para um fusquinha prateado que passava, lançando nuvens de fumaça ? igual aquele.
? Mas que besteira, mulher ? fala uma menina bem magrinha de olhos tristes ? para quê carro? A gente nem precisa dele. É tão perto por onde a gente anda...
Narcisa ouve tudo calada, apenas acompanhando os passos das meninas enquanto elas mudam de lugar.
Um carro para do outro lado da rua e desce uma mulher elegante, trazendo uma bolsa pendurada no ombro. Quando o sinal abre para os pedestres, a mulher atravessa a rua e caminha na direção das garotas. Elas correm em debandada, cada uma procurando o seu ponto de família. A mulher ainda pede para esperarem, mas ninguém fica. Vendo que os adultos se levantam, a visitante volta apressada para o veículo.
Quando Narcisa chega, sua mãe abre os olhos e pergunta com voz cansada:
? Que correria é essa?
? Uma mulher.
? O que ela queria?
? Não sei. Talvez levar a gente, como levaram a Cotinha.
? Pois vocês deviam ir com ela. Iam ter uma vida melhor.
? Não é verdade. Se fosse melhor, Cotinha não tinha fugido e voltado pra cá.
Era sempre assim. Às vezes, aparecia alguém do Juizado de Menores e acabava por levar as crianças para os orfanatos. Elas sabiam e fugiam, não dando oportunidade de serem apreendidas.
Chega a noite e Narcisa espera o trânsito diminuir. Lojas fechadas, somente o restaurante está funcionando. Ela sai cautelosa, consegue atravessar a rua e se aproxima do prédio sorrateira, pois não pode ser vista pelos clientes. O cheiro da comida torna a fome mais crucial. Fecha os olhos e devora os mais saborosos pratos, num desejo incontido de sobrevivência.
Através da vidraça, vê casais conversando, comendo e bebendo. Fecha os olhos. Vê-se sentada na companhia de um jovem e a mesa repleta de iguarias. Desperta de seu sonho com os gritos do guarda que expulsa pedintes do local.
Corre.
Quando não vê mais o vigia, vai direto para o depósito de lixo. Ali é seu restaurante, como de todos os outros. Como os animais, recurva-se sobre a lixeira e procura a sorte grande dentro do amontoado de restos de alimentos. Ainda bem que a lixeira está quase cheia. Sem muito esforço, inicia a tarefa de separar o que não lhe serve. Do recinto, sobe um cheiro forte dos produtos em decomposição, tornando difícil respirar. A menina, no entanto, só tem olhos para o que está aparecendo a cada remexida que dá. De repente, um sorriso de alegria invade seu rosto. Seus dedos tocam em algo duro, cilíndrico. Sabe que é metal. Uma lata. Consegue retirá-la e vê que se trata de uma lata de salsichas. Coloca ao lado e continua a pescaria. Após alguns minutos, agora com três latas, afasta-se do depósito, pois sabe que em poucos instantes chegam os adultos para se abastecerem.
Sai cautelosa do local. Suas mãos estão sujas, a roupa molhada, o rosto respingado de suco de verduras amassadas, mas com isso não se importa. A alimentação do dia está garantida e sua mãe vai poder recuperar as forças, pois há dias não come.
Espera o trânsito diminuir, protegida pela sombra de um poste, e avança cautelosamente, escondendo sob o roto vestido o tesouro encontrado. Atravessa a rua e avança para o seu lar sob o viaduto. Aproxima-se do local onde vive com a mãe e coloca as latas sobre uma pedra, no chão. Pega um prato de esmalte, que já não tem mais cor, e com um abridor de latas enferrujado esforça-se até conseguir abrir um espaço para que as salsichas saiam. A colher que utilizam tem a mesma origem: depósito de lixo.
Agacha-se ao lado da mãe e com um fio terno de voz, chama:
? Mãezinha, seu jantar.
A mulher não responde.
Narcisa pega em sua mão. Está gelada. Abraça-a, colocando o rosto sobre seu peito. O coração está mudo.
Lágrimas rolam no rosto infantil sofrido. Olha para as estrelas, como se procurasse ver o espírito da mãe vagando no espaço. Dá um longo suspiro.
Sabe que está só.

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Inspiração

Os noticiários mostram o crescimento da pobreza e como sofrem as pessoas sem teto, sem alimento, sem o mínimo de condição de uma vida digna. Nesse contexto, as crianças mais sofrem.

Sobre a obra

Procurei ser conciso e focar nos pontos principais do problema, principalmente na inocência infantil, quando a criança enfrenta seus problemas sem saber o porquê da vida que leva.

Sobre o autor

Embora faça parte da Academia Piauiense de Poesia, gosto de escrever contos e romances. Estou com três romances de época publicados e em fase de conclusão do quarto.

Autor(a): ANTONIO VASCONCELOS PACHECO (A. V. PACHECO)

APCEF/PI