Talentos

A grande rã ovulou na beirinha

A grande rã ovulou na beirinha do açude. Suas crias eram bolinhas brancas,
inúmeras, incontáveis. Os olhos da grande rã absortos no processo, um delírio, uma
obrigação. A grande rã já percebera há muito a lenta e hipnótica dança da temível cobra de veado, por conta disso mais ainda se esforçava para desovar o último rebento quanto antes.
Mais se insinuava a serpente, mais ligeiro paria a rã. Paria é um modo de dizer,
mais apropriado aos mamíferos. É que este pobre narrador nunca teve na Biologia um ponto forte. Sempre preferiu a observação naturalista in loco em meio a fumos fortes e álcool destilado aos longos tratados sobre a matéria, daí a ignorância acerca dos termos técnicos.
A rã paria pois sabia que não tinha como escapar ou melhor sabia que tinha que
parir o quanto antes para salvar a espécie. O importante naquele momento era ovular.
Seria algo como – na espécie humana – você ser pego pela sua mãe aos doze anos de idade em plena masturbação na hora do gozo, existiria a consciência, a perda da
inocência, talvez até um sentimento de culpa, mas uma vez iniciada a ejaculação com que autoridade sua mãe conseguiria estancar o processo?
Paria a rã. Que divino desprendimento sentiu quando se soltou o cordão
umbilical, um cordão das rãs, feito de baba, de gosma, invólucro dos embriões dos girinos, não um cordão humano. Eu não falo dos humanos, refiro-me aos sapos e aos lagartos. A grande rã parecia sorrir, já vivera tanto, que importava? Poderia viver mais, sobreviver a mais uma estação das chuvas, deliciar-se com os exóticos insetos do mangue - alguns com patas grandes que andam sobre as águas como para provar quão pequena é a fé do homem -, tocou a sua nota na sinfonia dos sapos pela última vez, um som gutural, profundo, de tuba e entregou-se com lascívia à gula da serpente. Sua missão estava cumprida.
No primeiro inverno - estação das chuvas como chamam nessa terra, império do
Sol – tudo brota, tudo fica tão verdinho, até os cheiros, tudo fica tão vivo! Na estradinha de pedras irregulares que circunda a fazenda, a gente tem que tomar cuidado pra não esmagar as rãzinhas. À nossa aproximação, movimentam-se alvoroçadas em grandes manadas, fustigadas pelas nossas imensas patas calçadas. É um balé coletivo, filmado
de cima parece o deslocamento dos antílopes pela savana africana, fugindo de leoas famintas, chacais e abutres, fugindo da seca voraz.
No Ceará chove. Lágrimas de todos os tipos, de arrependimento, de felicidade,
de saudade, de gratidão, de crocodilo, lágrimas chovem copiosamente e as rãzinhas não saem do meio da rua, muitas vão morrer antes de ficar adultas. Nem todas têm a sorte da grande rã. Pra ser uma grande rã nesse mundo cão é preciso muita disposição, sabedoria e uma ajudinha do grande deus Tupã, que é quem manda mesmo nessas paragens mais
caboclas.
Nem o inverno acaba bem dizer e o homem já começa a queimar carbono.
Desta feita foi um caboclo de nome Raimundo Faz Fogo, conhecido carvoeiro das redondezas. A primeira vez que este narrador presenciou sua figura sertaneja foi no bar do Belon, birosca de cachaça, fumo e bilhar, onde o povo bebe no balcão, em pé ou em bancos toscos, lá só vende bebida, o tira gosto os bebo trazem de casa em bacias, muita farinha, caldos gordurosos, alguma carne, peixe, ovos, feijão, panelada, sarrabulho, cajarana, cajá-umbu, siriguela, caju – que dá um mau hálito da gota – e tudo que tiver preparado pro almoço e que der pra trazer sem a mulher de casa reclamar que às vezes
elas dão vexame e vão buscar seus homens no boteco. Aí o bicho pega.
Não era o caso de Raimundo Faz Fogo. Esse não era casado, vivia só, num
barraco improvisado no meio da mata, aliás, vamos tomar cuidado com as palavras, pois em chamar aquilo de barraco, o leitor pode pensar que é uma casa. É não, é uma cabana, uma tenda, uma barraca de acampamento porque Raimundo Faz Fogo não esquenta
lugar muito tempo não. O serviço dele é de carvoaria, ele acampa na mata, faz uma
queimada pra alimpar o terreno, derruba as árvores, enterra em covas e toca fogo por
cima. Quando desenterra, a madeira já virou carvão vegetal vendido a dois cruzeiros a saca, mais barato que gás natural e mercadoria de muita valia nessas paragens, até porque os que moram na capital aqui vizinha compram prumode de fazer churrasco.
Estatura baixa, corpo franzino, mãos grandes e calejadas, antebraços vigorosos,
chapéu de feltro, camisa de manga comprida enrolada até a meia, calça social e chinelos, bigode, olhos enrugados e cabelos grisalhos, facão no cós e carroça
estacionada na porta, Esse é Raimundo Faz Fogo.
Este narrador ainda teimou com ele, não sem certo receio porque esse povo é
meio brabo e pode se tornar violento se você não souber tratar, mas em mesa de bar de tudo um pouco se discute, da filosofia de Nietsche à teologia dos Cátaros e não faltam professores versados nas Ciências, nas Artes e na Magia.
Nesse dia, o leitor tem que entender que fazia muito calor e o narrador já tinha
bebido um bocado e com isso estava bastante falador e movido sabe-se lá por qual desejo ou curiosidade deu de teimar com Raimundo sobre a técnica da coivara, muito praticada na região e alvo de intensa polêmica entre os tradicionalistas e os mudancistas, tudo isso acompanhado muito de perto pelos revisionistas.
Dizia o narrador que a coivara ou queimada prejudica a Terra porque mata os micróbios e bactérias que se fixam nas raízes das plantas e lhes ajudam a fixar o
nitrogênio presente no solo, elemento essencial para o processo da fotossíntese.
Raimundo Faz Fogo não pôde conter um esgar de piedade pela ingenuidade de
nosso narrador, que nunca plantou uma batata sequer nem um caroço de feijão no
algodão umedecido dentro de um copinho de plástico. Se não queimar como é que vai limpar o roçado???
O narrador vai me perdoar mas os argumentos de Raimundo eram muito bons e não vai aqui nenhuma defesa até porque eu não me lembro bem quais foram, pois o dia estava muito quente e eu também tinha bebido uma terça, inclusive tinha acabado de provocar nessa hora que ele falou, os olhos se me encheram d`água, o estômago em convulsão, uma fraqueza nas pernas, uma tontura, mal me contive em pé escorado na parede externa do botequim quase pra botar os bofes pra fora. É muito ruim quando você está começando a beber que você não agüenta beber o tanto que os outros bebem.
Mas, os argumentos de Raimundo eram muito bons! Eram fundamentados na
experiência, ali na prática, em anos e anos de trabalho duro no roçado, de sol a sol, e
não seria com livros que se derrubaria o saber milenar da agricultura popular!!!
Falei agora como um político. Eis um discurso afinado com o povo.
Feito o dever de casa, dada a lição, tomada a tabuada, verificada a ortografia e a
caligrafia, dado enfim o diagnóstico do enfermo e preparada a extrema unção do infeliz, Raimundo virou a sua terça com um proficiência que não deixava margem para dúvidas.
A Terra tinha que queimar mesmo, senão como ia limpar o terreno pra fazer o roçado; aliás, depois da terra queimada, ela até fica é melhor!
Raimundo partiu da birosca em sua carroça no rumo do seu barraco no meio do mato, mato este queimado, que o empenho de Raimundo era fazer deste mundo carvão.
Ora veja então em que situação se encontravam aquelas centenas ou milhares de pequenas rãs, ainda tão jovens, desorientadas, órfãs de mãe. Não bastassem as cobras de
veado, os gaviões carcarás, as corujas rasga-mortalhas, ainda mais esta. O fogo na floresta!
Tudo culpa de Raimundo? Não, é que o mundo é desse jeito mesmo desde então.
No começo, naquele tempo mesmo, as coisas já começaram a dar errado, mas como era de pouco a gente não percebia, o mal era pouco, mas hoje onde você bota a vista é fogo, é queimada, é clareira aberta, é um calor desgraçado e está na Bíblia que, da primeira vez, o mundo acabou com água, mas desta vez vai acabar com fogo...
Raimundo era um tipo de Judas, ele fora escolhido para fazer aquilo, cortar,
matar, tacar fogo e onde era madeira, fruta, passarinho, lagarta, preá, caçote, camaleão não tem mais não. Só o que se vê é lote pra construir ou pra plantar cana, soja, milho pra exportar que nesse país em se plantando tudo dá!
E Raimundo fazia muito direitinho o serviço.

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Inspiração

O passeio com meus cães no sítio Tunga, o verde do lugar, as plantas, os bichos e a chegada de um senhor que tinha por oficio produzir carvão queimando a mata.

Sobre a obra

Nesse texto, pratico o discurso livre, foi texto de um fôlego só. Me parece cada dia mais atual. Como nós humanos queimamos e desmatamos tudo. Tudo destruimos. Tem algo de irônico na forma de ver as coisas, de ver o confronto entre a ciência e a tradição, de ver o cotidiano, a vida e a morte fervilhando.

Sobre o autor

Meu nome é Otavio Pires Neto. Fiz teatro quando jovem e sempre gostei de escrever. Mas sempre foi um hobbie. Nunca guardei meus escritos.

Autor(a): OTAVIO PIRES NETO (Otávio Pires )

APCEF/CE