O escritor

A jovem República ainda não estava solidificada; vez por outra um levante, protestos e a lembrança de um déspota esclarecido, de tempos políticos melhores, diga-se de passagem. Quando isso ocorre, de um sistema ser questionado, sempre aparece a velha ideia do bode expiatório, do desvio de foco. E assim acontecendo, a massa de manobra, que alguns chamam de nação, encontra o culpado, sacrifica, e segue feliz na santíssima trindade do pão-circo-agua. Foi quando o jornalista fracassado, expulso do exército por indisciplina - sempre eles - foi convocado para transformar uma comunidade que se formava a ermo, no sertão da Bahia, na inimiga pública número um. Mesmo antes de partir da Capital para Salvador, o tísico já iniciaria os escritos, trazendo as impressões do que ainda desconhecia.

O cenário foi se construindo. Localizada a sete dias de viagem cavalgada de Salvador, em meio à paisagem ressequida, Belo Monte era o epicentro da revolução de onde o País seria tomado pelos inimigos da República. No lugar árido, decerto soprava o vento quente do inferno que rapidamente se espalharia por todo lugar. Sua população, formada de imigrantes malformados, empenados, sem beleza física. E esses penitentes místicos, seguiriam decerto como flagelos contaminando um país nascente com a ignorância nativa. Tendo o auspício de um louco visionário - e como os psicopatas são perigosamente atraentes – nada se podia esperar de positivo de lunáticos religiosos que retrocediam à lógica do processo civilizatório. Tudo isso, o escritor já levava a bordo do navio que o conduzia ao nordeste.

A missão encomendada ao jornalista era simples: Tornar pública a aventura de um bando de loucos religiosos que cegos pelo fanatismo, ousaram afrontar o exército do país e tendo apoio de entidades subversivas e contrarias à tradição, família, Deus e a pátria, causou danos à nação. Positivista e evolucionista, as ideias racistas do escritor encontraram solo fértil para sua ambição literária. De fato, o laboratório era perfeito para que ele ensaiasse seu nefelibatismo lítero científico. Com desassombro, derramava com sua pena sobre o papel, o saber filosófico, antropológico, geológico, botânico, saberes de uma enciclopédia que já se nascia ultrapassada.

E sucedeu de que o escritor cumpriu bem o papel. Assoprou que o nordestino era antes de tudo um forte, para logo depois apunhalar a raça; transformou uma sociedade miserável, que era inoportuna aos coronéis fazendeiros, em ameaça à república; devolveu à instituição clerical a prerrogativa da indulgência divina; apoiou o massacre e ainda fez-se de denunciante de uma força desproporcional de modo mentiroso.

Para compor o cenário final, fez-se uma montagem fotográfica, na qual mulheres de soldados e outras figurantes, mulheres e crianças, se apresentaram como resgate da localidade de Belo Monte. Na verdade, não houve clemência. Como troféu de batalha, arranjaram um corpo qualquer entre os tantos que jaziam, e simularam que ali estava o peregrino que conduzia aquela gente. A história é a dos vencedores, ainda que escrita à distância. O escritor nunca pisou os pés na localidade.

Retorna à capital, obra concluída, gloria conquistada. É alçado à grande academia. Presta concurso para professor de lógica no colégio D. Pedro II – que ironia, ele que detestava a monarquia – e perde o embate para um filósofo cearense; porém, por influência política, toma o posto. O homem de uma obra só, lamenta por viver no pior dos países, e segue sob as proteções políticas, até o dia em que resolve lavar a honra de ter sido traído pela mulher. Morre de um tiro, disparado em legítima defesa.

O escritor não merece mais que isso como relato de sua existência. Ainda hoje sua obra é mistificada como uma obra-prima literária. Mas a história sempre deixa uma brecha da verdade exposta, e alguém um dia põe o olho lá. Aguardemos.

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Inspiração

A ideia surgiu a partir da leitura de uma obra de Jose Augusto Moita - Canudos ou Belo Monte, um outro olhar. Nela, o pesquisador desmistifica Euclides da Cunha e mostra e comprova através de exaustiva pesquisa que a real história de Canudos e Antonio Conselheiro é totalmente divergente da divulgada.

Sobre a obra

Narrativa simples, sem técnica literária específica.

Sobre o autor

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Autor(a): PAULO ROBERTO PEREIRA DE ARAUJO (Paulo Araujo)

APCEF/PE