Enquanto chovia

Chovia. Maria não sabia que chovia, não se sentia bem. Sua saúde era boa, mas estava
visivelmente agoniada. Nada mais era como antes. Não se abraçavam mais, mas amavam-se
profundamente. O contato era ínfimo. Os divertimentos, os entretenimentos tão diversificados
de tempos atrás não faziam mais sentido. Nenhum deles. Após um longo período árido, um
tempo em que não se ouviu uma única gota de água se espatifar no chão, chovia
encantadoramente e Maria nem percebia.
Lia, como era carinhosamente chamada, não mais pintava seus fios de cabelos brancos como a
neve, que se misturavam aos fios negros. Um tempo atrás, usava uma coloração bonita, que
combinava com sua pele e sempre que os coloria, dava vida não somente aos seus cabelos, mas
também a si própria. Suas unhas permaneciam transparentes, nem lembrava mais daquele
esmalte bege rosado que já fazia parte do seu eu. Não comprou uma peça de roupa sequer em
todo aquele tempo e não tinha o menor desejo de fazê-lo. Não parecia a mulher que jamais
passava uma semana sem apreciar vitrines e se sentar para tomar café nas mais variadas
padarias e cafeterias, que gostava de ver as pessoas zanzando, umas entre outras com suas
características e alegorias que definiam as próprias personalidades, que adorava sentir os aromas
das perfumarias. Maria amava seus perfumes a ponto de não conseguir jogar os frascos no lixo,
mesmo quando não havia mais uma gota sequer. Os cheiros eram inebriantes e as embalagens
fascinantes. Num dia ou noutro, ela ainda presenteava-se com umas gotas nos pulsos e atrás das
orelhas. Foi nesse tempo que sua pele ficou flácida, muito flácida. Isto a incomodava. Tinha
pouca vaidade, mas sua pele era boa, quase perfeita, e de repente nada mais era igual. Sem
abraços, sem beijos, sem suas viagens cheias de histórias, fascínios, sem sua pele, seus cabelos
chocolate, sem seus cafés, sua vida estava opaca. Ela, que antigamente não se importava com
mais nada além do bem-estar familiar, que dava a própria vida para não falhar no seu trabalho, o
que já a tornava realizada e vitoriosa, foi com o tempo querendo mais da vida e assim,
conseguia unir o simples com o esplendor em um mesmo dia, em um mesmo passeio, em um
mesmo minuto e isto a encantava. Escassez de sentimentos ela não admitia mais, nem mesmo
escassez de emoções, de sensações. Maria acostumou-se com o brilho, com a intensidade, com o
poder de tornar tudo melhor e naquele tempo não o conseguia mais. Tentou por diversas vezes
ousar, inovar, doar, rezar, meditar, mas em muitos dos seus dias ela não reagia bem. À sua volta
muitos se perdiam. Vidas e mais vidas se iam, pessoas ficavam desempregadas, outras com
fome, na miséria, situação essa que ofuscava o esplendor não só da vida daquela mulher, mas de
qualquer outro ser sensível. O mundo estava triste. Não havia liberdade. Não havia segurança.
Todos corriam risco. A caridade multiplicou-se, as pessoas boas tornaram-se ainda melhores, no
entanto o que já era ruim continuou assim. O grande trunfo de Maria era a autonomia. Ser livre
a fascinava. Contudo, não tinha liberdade para beijar um filho, um amigo, um irmão. Tinha
medo de ter que se acostumar a esta nova situação. Maria era uma mulher que prezava a ética,
tinha bons princípios, então ficava indignada que em um tempo tão difícil, pessoas se
aproveitassem da situação para adquirirem ainda mais privilégios, alguns monstruosos, outros
ínfimos, mas falta de dignidade, de respeito, de honestidade não tem tamanho, nem proporção.
Pessoas espalhavam, panfletavam mentiras absurdas sem ao menos ter alguma regalia, apenas
por maldade mesmo, para confundir a vida de uma multidão. Restava à mulher de cabelos
grisalhos, de pele flácida, a esperança de dias melhores. Lia não desistiu de sonhar, mas a força
agora era modesta.
A mulher que adorava cafés, levantou-se, brincou com a sua Lulu, que por vezes alegrava e
iluminava muitos de seus momentos, abriu a janela, escutou a musicalidade da chuva, apreciou
o fenômeno cair do céu, agradeceu, suplicou por proteção ao mundo, por muita proteção e foi
dar cor aos seus fios brancos, assim que recebeu a notícia que a vacinação começaria.

Compartilhe essa obra

Inspiração

Mortes, sofrimentos, mentiras e tantas tristezas provocadas pela pandemia pareciam não ter mais fim, até que enxergamos uma luz no final do túnel, a vacinação.

Sobre a obra

Meu escrito foi sobre a Maria, a Lia, que viveu toda a tristeza da pandemia e só conseguiu se reerguer com a notícia da vacinação.

Sobre o autor

Trabalhei na Caixa por trinta anos.
Depois que aposentei, comecei a escrever mais.
Em linguagem coloquial, procuro transmitir algo bom, através de mensagens ou pensamentos, para reflexão, da maneira mais simples possível.

Autor(a): Claudia Casseb Casagrande (Marília)

APCEF/SP

Obra não está disponível para votação.