UM VOO DE PÁSSAROS NO DIA DO TRABALHADOR

dela, num 1º de Maio sem perspectivas. Mas ainda restava a live de Edson Gomes.
O nublado do dia me fez esquecer dos pássaros. Ao anúncio da noite cantei “Vamos amigo lute” e fui me preparar para mais uma noite de sono inquieto pelo distanciamento. Antes da água, ouço gritos de horror e socorro, corro para a janela de coração acelerado e atordoado. Da janela onde pela manhã tinha um pássaro tentando entrar, agora no escuro da noite surge uma súplica SOCORRO!!! PARA MARCELO, PARA!!! MEU FILHO. MEU FILHO NÃO!!! POR FAVOR, MEU FILHO NÃO! PARAAA!!! Meu pássaro não liberto de manhã saiu pela garganta voando alto e gritando “VOU CHAMAR A POLICIA, VIU?! NÃO PASSO PANO PARA AGRESSOR!!!
Na inquietude do pouso refleti em como os gritos de uma mulher pedindo socorro tem o poder de calar uma comunidade. É engraçado que num prédio de 13 andares se ouvem apenas dois gritos: um de dor e desespero e outro em tom de ameaça e angústia. Meus gritos acalmaram o agressor e a vítima. Ainda é mais engraçado como o lobo vira cordeiro quando se sente ameaçado. Entrei nos grupos de zap do prédio para saber de onde vinham os gritos e concluir a ação – apenas a resposta do silêncio. Na quebra do silêncio eu li “já se calaram. esta tudo normal. não podemos fazer nada” Em seguida uma propaganda de delivery de acarajé que garantia o sabor da Bahia ou o dinheiro de volta. E assim mais uma mulher é agredida e meu pássaro baixa as asas sofrendo por não conseguir ajudar.
Não me aninhei. Não recolhi as asas. Como pode alguém dormir diante da violência do vizinho agressor? Apenas pela manhã descobri que ao ouvir minha ameaça convicta ele fugiu. Sabendo do apartamento fui lá e a encontrei na porta. Vi uma mulher pássaro como eu, bonita, porém dilacerada, ferida e envergonhada. A vergonha equivocada que as passarinhas carregam ao longo dos anos quando ouvem “não dê motivos ao seu marido” ou ainda “se apanhou deve ter aprontado alguma coisa” afinal, em briga de marido e mulher não mete a colher. Alto lá! Se mete a colher, o distintivo e a prisão! E eu meto mesmo!
Sem nem mesmo esperar sua reação ou perguntar seu nome, abri minhas asas através dos olhos solidários e com gentileza lhe entreguei este bilhete:
“Vizinha, espero que estejas bem. Este bilhete é só para dizer que você não esta só. Eu estou aqui”.

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Inspiração

No período mais árduo do isolamento, aumentaram de sobremaneira os casos de violência doméstica. Escrevi o texto a partir do ponto de vista de uma moradora de um bairro de classe média alta que se espanta ao perceber que a violência contra as mulheres não escolhe cor ou classe social.

Sobre a obra

Usando as técnicas do texto narrativo em primeira pessoa, criei esta crônica do cotidiano para descrever em texto narrativo, porém poético, o cotidiano das mulheres enclausuradas em suas próprias vidas por conta da violência doméstica.

Sobre o autor

Nasci no Recife em 1980 e escrevo cordéis desde 2005. Tenho mais de 80 títulos publicados. Os temais que mais gosto são a escrita de textos para o público infantil e de gênero. Nas horas vagas, eu sou instrutora de oficinas de cordel e palestrante.

Autor(a): SUSANA MORAIS DE FRANCA MEDEIROS (Susana Cordelista)

APCEF/PE