Talentos

Umaquecê

Umaquecê

Ela não tinha identidade, era sem caráter, por isso, para o universo dessa narrativa, poderia ser chamada de Umaquecê. Morria de medo de ser excluída da estória. Ela não passava de uma personagem secundária, e o texto não passava de um rascunho em gênesis. Narrativa nos intermináveis bocejos de organização. Enfrentando os inevitáveis purgatórios revisionais. O autor em constante debate com o narrador, este, confiante, sempre achando que o escrito estava bom. E o autor, insatisfeito, não sentindo nada disso.
Toda vez que o narrador descansava do seu trabalho, entrava em campo o autor, investido de Carpina, e atacava o madeirame irregular com seus instrumentos afiados. Cortava adjetivo, martelava advérbio, aplainava parágrafos, esquadrinhava capítulos. Atacava a minuta com marretadas e formãozadas. E as personagens, algumas vezes, eram empacotadas para a lixeira dos infernos junto com os capítulos expurgados. Daí se justificar o pavor dela de ser sumariamente excluída.
Ela que viu uma personagem principal cair em benefício de umazinha medíocre, na centésima décima quarta sessão revisionista. E deu um trabalho danado ao narrador para realinhar trechos da estória a fim de adequá-la ao desvio narrativo sofrido pela trama. Ela que ouviu o Carpina conversando com o Narrador e dizer que a depuração era necessária. Para varrer excessos, para refinar o entendimento, enxugar o texto. Que qualquer personagem poderia ser metamorfoseada ou mesmo cancelada a depender dos sertões e das veredas que a estória tivesse que enfrentar. E ela vivia se perguntando em que momento, o casmurro Carpina poderia fazer considerações conspiratórias a respeito dela. A qualquer momento, madame. Você não é bovary. O crime e o castigo sempre estão à espreita. E ela, que era apenas uma triste figura, poderia ser apanhada no campo de centeio, em boa hora.
Coadjuvantes miseráveis como ela não eram nada. Outras personagens podiam acumular o seu papel. Ela não era indispensável e lhe faleciam teses convincentes para bater o pé diante do judas serrote do Carpina, perante o qual se definhavam as melhores performances. Talvez até fosse a última flor de alguma coisa. Mas não era dona flor. Em vão esboçar resistência. Uma voz sem ouvidos. Voz, como recurso isolado, era uma casca de noz navegando no sentimento oceânico. E não a consolava saber que, na recente virada revisional, foi bem aparentada com a colega que galgara de posto. Só que a ascensão havia sido da colega. Sucesso era da amiga genial. Subira dessa vez, mas quem saberia dizer se não cairia na próxima.
Era preciso levar a sério os precedentes. A ameaça contínua. Os poderes formatadores do formão. Que mexia nas posições das personagens, tivessem ou não importância, se é que se poderia dizer que alguma já tivesse importância. Ainda mais para ela em existência laboratorial. Por isso é que ela aspirava tanto pela chegada da publicação. Para ela, a redenção, o próprio céu. Pois, depois do texto publicado, ela não temia ser morta no calor do enredo, quando a necessidade da trama o exigisse.
O que a fazia se borrar de pavor era desaparecer sem ter futuro. O que a mantinha em pânico era o banimento sem dignidade, apenas motivado pela egolatria da goiva. Ser por umas páginas e não ser mais nas seguintes. Essa era a questão. Um sumiço repentino, sem mérito de epitáfio, sem lástima de algum leitor que sequer lhe chegaria a conhecer. Um desonroso fenecer. Diversamente da epifania da personagem que morre num ato de amor, na defesa de causas justas, na trincheira ideológica. Morrer encarando, sem dúvida, um vendaval de adversidades existenciais, certamente traumático, degradante, mas sempre validado pelo rastro singular que cada personagem deixa.
Pela garantia da publicação é que ela se mortificava. Com a publicação as personagens nascem para a vida, transcendem do tosco papel para o mundo mental do público. Mudam da essência para a aparência. E nem se importaria com rebaixamento, obsequiada a aparecer poucas vezes, desde que estivesse presente no ato solene de ganhar a vida pública. Só que ela não sabia a quem recorrer, alguém a quem ela pudesse ficar eternamente grata por lhe salvar.
Preocupação, pelo visto, apenas dela. Suas colegas, mantinham-se caladas. Até certo ponto compreensível, porque as personagens não podem conversar qualquer coisa entre si. Só conversam em diálogos previamente elaborados. Não é dado a uma personagem tagarelar com a outra. Tudo que disserem tem que ser em benefício da trama. Quando aparecem em cena, estão a serviço da estória, para louvação do texto e do protagonista. Depois que desempenham o contido papel, são recolhidas aos escombros da narrativa, onde ficam aguardando a boa vontade do Narrador.
Ela concordava com isso. Fazer o quê? Tinha ciência do seu existir sem destaque, contudo não deixando de ser um existir, com todas as necessidades que alimentam qualquer existir. Ela nem ansiava por lugares iluminados. Bastava-lhe a penumbra do canto do texto, onde ali pudesse ficar quieta com o seu coração, desde não fosse alvo do som e da fúria do Carpina. Ela que reconhecia seu lugar de súdita, e das menos prestigiadas. A serviço do Narrador, mero mandatário, encarregado de embaralhar o destino das criaturas. Na realidade, um inventor de sonhos. Ele mesmo sem garantia e que poderia ser substituído numa dessas revisões. Pois quem mandava, ao final e ao cabo, era mesmo o Carpina e seus formosos formões. E de nada adiantara a ela ter descoberto que o Carpina tinha um Senhor acima dele que o editorava, a quem o Carpina precisava demonstrar que tinha o Narrador nas mãos. Justamente, o Narrador, que parecia ser o mais próximo a ela. Apenas mais próximo, não um aliado. De que adianta se aliançar com alguém sem poderes.
Compreendeu que estava sozinha. Filha perdida da fatalidade. Sem redenção. A espera do dia final. Ou da publicação ou da centésima décima quinta revisão.


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Inspiração


O processo de criação literária, com foco na revisão do texto. Processo doloroso, mas necessário em benefício da obra.

Sobre a obra

Personagem Umaquecê. O nome surgiu aleatoriamente. Pode ser uma que quer ser, ou vamo aquecer, ou a sonoridade de um mantra nativo. Algo que teima em ser, em existir. O ponto de vista dela utilizado pelo Narrador onisciente. intertextualidade, prestigiando personagens de autores diversos. Com intensas marcas de metalinguagem.

Sobre o autor

Sou um leitor que busca despertar o escritor. Tenho participado de oficinas de criação literária, de palestras e encontros com outros escritores.. Escrevo poesia, crônicas, contos. Publico alguns textos no blog de um amigo escritor.

Autor(a): FRANCISBEL MARQUES (Alirio Marques)

APCEF/AM