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Noite de preliminares
Noite de preliminares
Por: Celijon Ramos
Dandão, Moleza e Dicró ainda habitam a lembrança mais recôndita de uma preliminar perdida no início da noite no longo tempo que me separa da alegria de ver um jogo nos idos de glória do velho estádio Nhozinho Santos.
Chegava-se cedo, via-se de tudo.
Ainda ecoam gritos vindo do meio dos pagantes. De repente, vendedores de algodão doce, sorvete, dindin e picolé disputam a atenção do público com um pipoqueiro que oferecia sua pipoca quentinha, feita na hora. No meio da arquibancada um negro retinto, corpulento, muito suado se agita. A camisa aberta até o meio do peito restou amarrotada depois de tanto se esbarrar num monte de gente que transita na arquibancada indo hora ao banheiro ou ao bar. Numa das mãos traz uma ruma de balões enchidos com gás hélio; na outra prende entre os dedos roc-rocs que giram fazendo barulho, atiçando o desejo de brincar da molecada. Olhar serelepe, de longe, ele busca atenção de todas pensando encher os bolsos com trocados. A torcida é para que um desses balões escapula, suba e suma no horizonte, enquanto permaneço sentado vendo de perto os olhos daqueles meninos faiscando de contentamento contemplando cada balão que se solta e se ergue rumo ao espaço.
Havia, porém, em todos pressa. Fariam de tudo para vender as guloseimas antes que a hora da principal chegasse. O certo é que aquela movimentação fazia parte, por certo, de um espetáculo. Só não imaginava sair dali com as imagens rodando a toda na minha cabeça, caçando um lugar para se fixar para sempre dentro da minha memória.
Era um turbilhão de emoções que me deixava alvoroçado, ainda que pudesse ouvir a transmissão vibrante no pequeno rádio à pilha Philco. Talvez se pudesse fazer as duas coisas (ver e ouvir) ao mesmo tempo. O metal da antena puxada para cima brilhava facilitava a sintonia nas ondas da ZYH 887 e, se se fosse um pouco mais no dial, quem sabe, se alcançasse as ondas da Gurupi. Ainda assim era inútil desejar saber o que se passava dentro das linhas do gramado naquele instante. O narrador, por certo, estava ali apenas para aquecer e conservar a voz até que o jogo principal começasse. Só podia ser essa a razão dos lapsos, da ausência da narração contagiante de quase tudo que rolava naquele momento no gramado. Nada lhe chamava a atenção, mas, quem sabe, somente dessa vez pudesse ser diferente e a cobertura daquele especial São José x Vitória do Mar pudesse invadir as casas a partir das ondas do rádio? Nunca se sabe e nem custa nada sonhar.
Preferi, todavia, esbugalhar bem os olhos e grudar o corpo no alambrado para acompanhar as jogadas que se desenhavam, acontecendo logo ali na minha frente. O certo é que a emoção sempre esteve presente naquele jogo disputado, um clássico de segunda que se fazia na preliminar. A certeza era só uma, era bom ver os jogadores vestindo com orgulho seus uniformes, honrando o tempo e a história impregnada nos panos daquelas equipagens encharcadas de suor pingando amor e garra sobre o verde do gramado.
A torcida presente é que não lhes dava bola. Nem ouvido, vista, nem nada para as jogadas construídas afortunadamente sob os respingos de chuva que deixavam aquela cancha tão desejada levemente molhada.
Exceto por alguns gatos pingados, que angustiados torciam, todos estavam ali para ver e vibrar com os lances da principal. Não se importavam, de maneira nenhuma, com as tramas das jogadas saídas dos pés pequenos, justos e hábeis de Dicró, quase sempre desarmadas pelo esperto Moleza, posto ali como xerife da zaga para garantir que o placar não se alterasse. Mas de nada adiantava. Ninguém reparava na disputa árdua acontecendo logo ali a um palmo do nariz, diante dos olhos de todos no campo.
A não ser por fustigar minha mente com lembranças, para todos os fins, os jogos das preliminares seriam totalmente destinados ao esquecimento, apagados da vida como se nunca tivessem havido na história. Não seria sem proposito, sem que houvesse razão alguma, que os olhos displicentes e desinteressados daqueles torcedores negariam que tivesse havido ali qualquer coisa interessante. E não fosse por essa estranha sensação que me chega depois do almoço, continuariam apagados longe do tempo da rememoração, o mesmo que me faz admitir que a saudade é outro nome que damos à chama que brota dentro de nós, às vezes, em lampejos sem que saibamos ao certo o momento da chegada ou os descaminhos que cercam e separam esquecimento e lembrança no recorreente momento da reconstrução da memória.
- E o relógio marca... 42 minutos do segundo tempo... um a zero pro Vitória do Mar... Tá lá no placar! Dizia o cronista no rádio para logo passar a falar, sem nenhuma cerimônia, da escalação dos times que viriam logo mais se enfrentar. Era como se somente essa partida importasse. Preliminar, não adiantava, não era nada. Não existiria nem mesmo que houvesse gol a comemorar. Era como se não se desce conta do dever de cumprir a obrigação fática de narrar um mero acontecido. Gol de preliminar?Que nada!
Mas foi dessa maneira despretensiosa que anunciou dentro daquele rádio a lembrança que agora chacoalha dentro na minha cabeça justamente no instante em que a moça da lanchonete me adoça a boca com goles de jacama. São sabores que reconectam tempos e estórias.
Porém sem desconfiar, influenciada e distraída, sem sofrer qualquer reprimenda, aquela moça chamava a fruta sem desfaçatez alguma pelo inconveniente nome de graviola. Foi assim, sem saber, que quebrara definitivamente a possibilidade de comunicação entre nossos mundos concomitantes e diferentes, vivendo em descompasso de lugar, de tempo e experiências. O dela em franca desassociação; mundo das histórias herdadas de um tempo cumulativo, apressado, repleto de repetições vindas não se sabe de onde, mas brutalmente atual como aquela graviola se desmanchando dentro do copo. E o meu, que carrega a anacronice do tempo. Tempo interno que trago dentro de mim, um tempo quase secreto que, por vezes, extravasa a ponto de fazer escapar uma palavra, uma memória que logo surge com o cheiro acre e adocicado daquela jacama, e que me flagra fazendo muxoxo, captando um quadro íntimo vazado do olhar que memoriza gols estufando a rede da trave de rede alva que dá fundos para a praça Catulo da Paixão Cearense no coração da Vila Passos. São gols definitivos que me povoam como registros da eternidade.
No entanto, posso ainda ver sumindo da cancha passos sem prestígio, cansados, como se procurassem refúgio ou o consolo de alguma casa segura. Mais à frente, esbaforido, Dandão avista Moleza. Não demorarão se juntar ao bom Ariosto e Soeiro que elegantemente seguram suas chuteiras na entrada do vestiário. Lá, banhado e descansado já se encontra o meio campista Dicró. Formam uma legião de craques invisíveis em busca de sobreviver num tempo mágico; tempo em que a memória vem e volta, retendo tudo que valha a pena e a eles verdadeiramente importe.
Mas talvez baste apenas uma visita, uma passagem por perto daquele estádio ou ouvir-se ainda algum chiado do rádio. Tudo se reativa. Tudo se revive. Sei que todos ainda moram ali naquele estádio fantasmagórico sem jogos, perturbador, vazio e silencioso, onde o tempo às vezes se vê pelas frestas absorvendo tudo que o cerca sem deixar que nada escape. De lá às vezes se ouvem gritos, insultos, apupos... sussurros. Ouvem-se urros e risos desconcertantes que chegam pouco depois dos gols, apenas um segundo antes da hora de comemorar. São vibrações super-humanas geradas no burburinho do calor do encontro das torcidas na hora de saborear heróicas vitórias. Pena que cheguem cedo, fiquem cegas e se calem diante das emoções que nunca se encerram persistindo vivas dentro das recordações de uma preliminar.
Mas foi possível ver um derradeiro chute. Foi Luciano Silva, traído pelo instinto de locutor, que gritou no microfone que o tirambaço passou raspando, tirando tinta da trave, subindo sobre o travessão para sumir para sempre sobre a marquise da arquibancada. Anunciou logo depois última volta do ponteiro quando disse: - Quará quá quá!!! Quará quá quá!!! retraindo o corpo e a voz, limpando com um gole d'água a garganta ressecada pela emoção que tanto tempo lhe restou contida. Ninguém nem reparou, com o fim do intervalo prenunciando o início de outro jogo muito aguardado como destaque principal. No portão lateral uma kombi creme liga o motor e acelera... Lentamente, de fininho, some levando consigo invisíveis craques que desde então desapareceriam por completo das pequenas notas de jornal. O que seria deles se não houvesse retalhos do tempo vivendo dentro da mente de um menino no mundo das memórias noticiosas que rondam as coisas do futebol?
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Inspiração
Memórias de times de pequenas torcidas do futebol maranhense. Hoje estando na inatividade, quase não existe registro da história desses times, seja em vídeo ou livro. O conto tenta chamar a atenção para isso no ambiente mais comum a eles que quase sempre jogavam partidas preliminares.
Sobre a obra
Memórias de times de pequenas torcidas do futebol maranhense. Hoje na inatividade, quase não existe registro da história desses times, seja em vídeo ou livro. O conto tenta chamar a atenção para isso no ambiente mais comum a eles que quase sempre jogavam partidas preliminares.
Sobre o autor
Escrevo contos onde que busco reconstruir memórias. Minha visão parte da percepção de que a literatura se constrói a partir da imaginação geradora imagens e memória.
Autor(a): CELIJON ABREU RAMOS (Celijon Ramos )
APCEF/MA
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