Talentos

Madrugada

Dissera que não, que chega, e esticou-se sentado, batendo os costados no espaldar da cadeira. Ao torcer o pescoço, fitara de relance a lâmpada acesa, quente, talvez a única na madrugada. A cervical estralou, as vértebras uma a uma soaram destroncadas. Era um nó em si mesmo. Dores. Dores. Basta, praguejara, dissera antes que chega. O queixo roçagou a mesa, tentando espantar a vigília. Aborrecido, vira a xícara vazia, o bule vazio, o adoçante cheinho até a boca que o doutor coibira por infração da diabetes. Droga, terrível, mas percebera que o açúcar era bem pior, deixava-o aceso, torpe por vezes. O adoçante vez em quando trazia sono.
Descalçou ao meio as sandálias congeladas e os pés reclamaram meias. Deixava aberta a janela; se a fechasse como respirar? – por fumaça em demasia. O doutor não sabia sobre o cigarro; também, não contara??!! Bastava os aborrecimentos de então. O cinzeiro abarrotava, desventrava-se em cinzas pelas beiradas. Típico comportamento da matéria sob a pressão dos exageros.
De um lado, livros; do outro, mais livros. A alcatéia o cercava faminta, pingava-lhe nos ombros a saliva quente, sedenta. Trezentas canetas lançadas a esmo sobre a mesa, mas afeição mesmo sentia somente por uma. Mal ela acabava, metia-lhe carga a dentro. Afinal era divertido, depois das oito horas de repartição, de ver gente suando e fedendo por todos os poros, poder ir comprar a carga novinha da velha caneta. Poder era pura diversão... nossa!
Distraía-se imensamente com os tecs-tecs da persiana que o vento lufava. Se fechar a janela não há quem suporte o calor da fumarada, dissera. Dissera alto talvez, que arregalara os olhos desconfiado, tivesse alguém escutado. Para ele não, era comum falar consigo, ajustar o som das palavras, etc. Consigo era constante. Agora, chega! E não talvez, mas agora alto mesmo. Coisa pior? Sim, a página branca reclamando, cuja orelha na lufada levantava afoita para avançar para a seguinte. Por mim, vai, dissera, baixo agora, para a folha tão somente, ficará em branco desta vez. Mas não ia, na lufada, oscilava apenas.
Levantou-se, por fim, com dificuldade, em meio às cadeiras esparramadas e recostou-se no parapeito da janela, ao ventinho fresco. Vira uma rasga-mortalha que passou rasgando, grassando, grasnando. No escuro, ainda via a barriga fofa, como de pelos brancos felpudos (ou que não penas), as sobrancelhas arqueadas, oblíquas e amareladas. Pôs a mão no queixo. Poderia vencer, enfim, a fadiga. Ali, a ver a noite, as lâmpadas longe, que não só a sua acesa, como estrelas caídas que o homem por perversidade derrubou. Ou são elas que refletem nalgum lago distante. Lago, aqui? Aqui não tem lago. Um formigamento se apossou dos punhos, das mãos. E que maldita regra pode açambarcar isto?, cismava, olhando-as demoradamente.
Sentou-se na mesa novamente, a folha ainda não havia avançado, o mesmo rosto pálido que escarnecia de sua fraqueza. Porém, havia uma grande razão para abandonar o vício: a dor insuportável nas costas, o incômodo contorcionismo, a friagem, o pulso inchado de cansaço do dia na repartição, as noites perdidas ora mal dormidas, as manhãs mal amanhecidas em que revolvia inquieto as fronhas dos travesseiros e os lençóis ao chão no tumulto, e o cigarro finalmente, e o café finalmente. Sim, o trabalho apodrece o homem. Estavam certos sobre isso, mais uma vez.
Nem me olhe, dissera. Fitava o teto agora emburrado, como uma criança bicuda que cruza os braços. Com desapego, brincava com as volutas da fumaça do cigarro. Na ponta ferruginosa dos dedos, recendidos à nicotina, uma pele escapulia recém-mordiscada. Arrancou e mascou-a nos incisivos. Queria unhas, mas não as tinha mais tão fartamente. Sangrou ressentido. Que esperasse nascer novamente, paciência... Pôs as mãos na nuca e estalou o pescoço com alívio, depois estirou os braços para cima. Passando o cigarro para a mão esquerda, pegou a caneta com a direita. Mimoseou-a com a palma aberta meio desequilibrada. Notara um cheiro estranho daquela vez: é perfume, dissera. Seria uma caneta feminina? Bobagem, és minha predileta, sabe disso, e sei também agora o porquê. És perfumada, dissera baixinho, perto do bocal.
Desenhou grosseiramente um rosto que vira na rua. Olhou para a estante dos livros, o rosto de Tolstoi. Deveria ele também criar barba, pensou. Voltou ao desenho, minuciava os traços canhestramente. Nunca fora bom desenhista. Deu-lhe um nome que apôs no frontispício. Por diversão fora dando nomes. Achou Alberto, imponente decerto. Tracejou uma rasa personalidade. Não, chega, basta, e abandonou a caneta com violência. Um pequeno estalido na mesa. O vento entrou pela janela virando-lhe a página, que sorria incólume no estertor de sua palidez. Averiguou o bule. Vazio. Foi até a cozinha e fez uma metade de café. Deitou o adoçante no fundo da xícara contando as gotas, uma duas três, mal imaginava que havia conjecturado algumas coisas enquanto a água fervia. Pôs o café na xícara. Não precisaria mexer desta forma. O dia vinha amanhecendo abertamente, tão rosado como um entardecer invertido. A aurora do crepúsculo. Olhou demoradamente as feições rupestres de Alberto, parecia-se com um Dorian Gray no fim dos tempos, tamanha imperfeição. Mas olhou assim mesmo, sem se importar com o desarranjo do esboço. Coçou a cabeça engordurada e luzidia com a ponta da caneta, puxou com os dedos uma das mechas do cabelo perto da testa. Suor, realmente. Empastou os fios num só, enquanto Alberto o observava em contrapartida de mãos nas cadeiras, os olhos de caneta azul, a predileta (como deslizava...) aliviava-lhe os tendões adoecidos pelo dia. As pestanas titubeavam molemente nesse torpor estranho ao sono, porque sono não era. Havia dito que chega, que basta, que droga, mas sequer podia conter a celeridade da pulsação nas pontas dos dedos, como se o toque amodorrado da amante viesse prenhe desse calor abusivo, absurdo. E como evitar a pressão?
Alberto poderia sorrir, enfim. Transitar por seu mundo que só dele dependia, em seu profundo caracter de esboço, de retalho. Daí que pouco ou nada valesse neste outro mundo, do lado de cá das repartições! O que importava a ele, naquele instante, era atirar-se de cabeça naquela notória emboscada. Viver... poder estar vivo já lhe era o bastante.


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Inspiração

Texto trata sobre a conexão de um escritor com a urgência da escrita e com os apegos aos costumes que derivam do processo.

Sobre a obra

Texto trata sobre a conexão de um escritor com a urgência da escrita e com os apegos aos costumes que derivam do processo.

Sobre o autor

Nascido em Feira de Santana, BA, em 07/12/1977. Possui estima pela literatura de um modo geral.

Autor(a): FABIO PORTO SILVA (Fábio Porto)

APCEF/BA