Talentos

Menino do Rio

A vida da gente parece que é uma grande cebola, cheia de camadas e às vezes as camadas mais superficiais se evidenciam mais e para ter acesso às camadas mais profundas é preciso um exercício de memória e reflexão.
Dia desses me peguei lembrando da minha época de criança, sem muito luxo e conforto, mas cheio de sonhos e determinação.
Tive o privilégio de morar às margens do Rio Tocantins, na época em que o rio era mais alegre, antes de virar lago era um rio cheio de corredeiras e nos meses de estiagem evidenciavam as ilhas de bancos de areia, que nós pretensiosamente chamavamos de praia. Nossa praia de água doce, a saudosa Praia de Porto Real. Era a melhor época do ano!
As férias escolares de julho tinham um sabor sem igual. Sabíamos que os parentes do Goiás viriam nos visitar. A casa da minha avó ficava cheia e era a época mais farta que tinha no ano.
Eu me esbaldava, eram tantos quitutes! Minha avó quando tinha notícia da data que os parentes iam começar a chegar já recrutava logo uns dois netos para dá aquela faxina geral na casa, eu nunca escapava desse alistamento. Lembro que ela tinha uma parteleira onde guardava as vasilhas que usava somente nas ocasiões especiais e que levava uma tarde para limpar. Coisas de vó.
Além da alegria que todo esse ajuntamento trazia outra coisa que me dava muita alegria no mês de julho era o dinheiro que eu conseguia fazer guardando os carros do pessoal que descia pra curtir a praia.
Era um corre prá lá e pra cá:
- Ei, deixa eu olhar seu carro?! Tenho vaga ali na frente debaixo do pé de manga. É sombra o dia todo!
Esse era o pitch que eu fazia pra chamar a atenção do meu pretenso cliente.
Tinha que fechar logo aquela negociação por que a concorrência era grande! Logo vinha outro guardador querendo fazer uma oferta e num ato instintivo eu logo gritava: esse carro é meu, esse carro é meu!
Depois de "fechar o negócio" eu ficava de vigia. Ninguém podia encostar no carro, que eu logo gritava: - Ei não encosta nesse carro não, por que eu estou olhando ele!
Era um senso tão grande de responsabilidade! Que hoje lembrando dá um baita orgulho.
Às vezes esse trabalho todo nem era recompensado. Várias vezes o donos dos carros se faziam de desentendidos ou falavam que tinham gastado todo o dinheiro na praia e que as últimas moedas tinham ido pra pagar a travessia de "voadeira". Eu ficava mais com vergonha do que com raiva. Mas logo passava, partia pra outra.
Lembro de uma vez que eu estava "olhando" um Logus e fiquei esperando até umas 10 horas da noite, quando minha mãe chamou pra entrar e tive que abrir mão de receber pelo meu trabalho. Sabe-se lá que horas que o dono apareceu para pegar o carro.
Apesar desses contratempos quando eu recebia era uma festa!!!! Lembro até hoje a felicidade que fiquei ao pegar uma moeda de R$ 0,50 pela primeira vez. Quanta satisfação! Quando recebia qualquer trocado corria logo pra casa de dona Miguelina pra pagar uma rodada de geladinho de groselha.
Uma atração a parte era ficar com meus amigos e irmãos falando o nome dos carros que passavam: - Aquelue ali é um Tempra! - Olha um Escort!
E a lista seguia: era Belina, Kadett, Logus, Verona, Opala, Chevette

E como ninguém era de ferro tinha aquele final de semana que a gente pegava a balsa (embarcação gratuita subsidiada que levava o povão de graça para a ilha) pra curtir um show na praia.
Aproveitavamos como dava. Apesar de ser um mês de férias, hoje eu vejo como eu aprendi com tudo isso.
Dia desses, andando de bicicleta pela cidade me deparei com um menino no sinal debaixo de um sol quente.
Me ofereci a pagar um lanche pra ele, que de pronto aceitou, mas o que na verdade eu queria era saber como estava a questão dos estudos dele. Disse que estava sem estudar por que tava com um problema nos documentos dele. Lembrei com grande intensidade da minha época de guardador de carros, mas sempre soube que eram os estudos que iam me levar a uma outra realidade, pois minha avó não me deixava esquecer: " meu filho, gente como nós só vai pra frente estudando." Bons ensinamentos que me deu aquela velhinha, que hoje sinto tanta saudade, mas lembro todos os dias de sua infinita sabedoria, aliás hoje sou alguém que deu certo por nunca esquecer suas lições.



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Inspiração

Me inspirei em minhas lembranças de infância e os ensinamentos da minha saudosa avó.

Sobre a obra

A obra fala das lembranças da minha infância, em especial as férias do mês de julho de quando ainda tínhamos a Praia Porto Real, antes do Rio Tocantins dá lugar ao Lago da Usina hidroeletrica de Lajeado.

Sobre o autor

Apesar desse ritmo frenético em que vivemos, procuro estar atento ao belo que a natureza nos proporciona. A contemplação do belo é uma forma efetiva de alimentar a alma.

Autor(a): WESLEY VENCESLENCO (Wesley Venceslenço )

APCEF/TO