Existe uma ponte quebrada sobre o que eu fui. A ponte liga o que eu sou ao que
eu gostaria de ser. O lado que estou é onde eu sou. O lado onde eu gostaria de
estar é apenas onde eu gostaria de estar. Olhando de cá, reparando bem o que
está para lá de mim, eu consigo ver e notar nessa parte de baixo, no reflexo
dessas águas, que eu não tenho asas. Eu não tenho asas. Mas já tive. Certeza
que já tive. Por que isso dentro de mim coça tanto, me revira, quer me rasgar as
costas. No entanto, no reflexo das águas, eu não tenho asas.
A ponte não será consertada. Não haverá reforma nem forma alguma de chegar
ali. Não tenho habilidade de construir algo sobre o que eu fui nem posso delegar
isso a ninguém. Mas existe, sim, uma possibilidade angustiante, de amargar.
Existe uma possibilidade de eu descer tudo isso. Posso atravessar a braçadas
essa correnteza louca, insana, tempestuosa, que é o que eu fui. Chegar, assim,
quem sabe, do outro lado onde eu gostaria de ser...
É certo que a correnteza pode me levar. É certo que eu possa me perder
misturado o que eu sou ao que eu fui. E se tiver perto de mim, atravessando,
algum tronco, algum galho, alguma raiz... Se eu encontrar muito profundamente
algo que eu possa me segurar, que eu tenha sido e estado ali tanto tempo... Se
encontrar algo nessa estupidez que é nadar e mergulhar em mim, eu vou
entender que o que eu fui tão profundamente pode me ajudar a me tornar quem
sempre um dia eu quis ser.