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A Contadora de Histórias
Era uma vez um planeta chamado Terra. É o ano 23 do Fim do Mundo. Nas primeiras horas do ano 2000, uma guerra eclodiu. Houveram ataques nas principais metrópoles mundiais. Bombas de um gás letal e tóxico, que exterminou milhares de pessoas em poucos segundos. O gás era tão perigoso que em contato com a água, a fazia evaporar por completo, deixando o solo sem vida. Em poucos dias, nossos oceanos haviam desaparecido, e a vida marinha extinta. A água evaporada dos oceanos se tornou nuvens escuras, o que impediu a luz do sol de chegar ao nosso planeta. A água se tornou escassa. Sem luz do sol, muitos animais foram extintos. A terra não mais produzia plantas. O planeta se tornou inabitável. As pessoas começaram a brigar entre si por água e comida e o caos se instaurou.
Eu nasci exatamente na primeira hora do início do Fim do Mundo. Assim como muitas outras crianças, não conheci meus pais, que morreram quando a guerra começou. Fui levado por um grupo de enfermeiros, junto com mais 19 crianças. Eles estavam feridos e sabiam que não sobreviveriam então entregou os 20 recém-nascidos para um casal de idosos que havia encontrado escondidos em uma loja. De alguma forma, a loja parecia ser ignorada pelas pessoas desesperadas saqueando tudo no caminho e pelos soldados que guerreavam nas ruas. Alguns dias se passaram, e a cidade estava em ruinas.
Como solução para resolver o problema de água e comida, um grupo de sobreviventes liderado por uma mulher e seu marido, já idosos, guiaram as pessoas, junto com suas famílias, para dentro de cavernas subterrâneas. Foram os mesmos que salvaram a mim e os outros recém-nascidos. Foi formada uma comunidade baseada na igualdade e produção dos próprios alimentos. Havia água potável que poderia suprir aquela população por 50 anos. A comunidade foi crescendo mais a cada dia. Fomos prosperando por 5 anos. Tínhamos luzes artificiais, criadas por nós mesmos.
A líder da comunidade era conhecida como Vó Brabus. Recebeu esse nome porque sempre que faziam algo que pudesse atrapalhar o andamento de nossa comunidade, ela respondia de forma brava,
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porém ao mesmo tempo, com ternura. Vó Brabus era amada por todos, principalmente por seu marido, que faria tudo por ela. Ele era chamado de Vô Quim. Os dois vivam brigando, mas se amavam. Riamos muito das brigas dos dois, que logo depois estavam se abraçando. Foi ali que aprendi o valor do amor e o que ele representa em nossas vidas.
Vó Brabus todas as noites nos contava histórias. Ela pegava trapos velhos e vestia para imitar uma velha bruxa de um conto chamado João e Maria. Ela contava de forma divertida como os irmãos precisavam se livrar de uma bruxa que os prendeu dentro de uma casa de chocolate. Lembro de outra noite, quando ela montou três “cabanas” de pano, e disse que a minha era a de tijolos, dizendo que um lobo mau vinha derrubar nossas cabanas. O lobo era o Vô Quim, que ela fez usar um cano amarrado na boca para fingir que era o bico de um lobo. No final, só minha cabana ficou de pé. Vô Quim nos deu um pouco de chocolate escondido dela por nossa casa ter ficado de pé, igual na história dos três porquinhos. Claro que depois a Vó Brabus deu uma bronca nele. Ela estava guardando esses chocolates para o Natal, uma festa que ela fazia todos os anos para celebrar o nascimento de um bebê que trouxe paz ao mundo uma vez. E as crianças ganhavam presentes.
Lembro do dia que contou a história de Chapeuzinho Vermelho. Na história o lobo devorava a vovó dela. Vó Brabus veio vestida igual a vovó da história. Nós todos abraçamos ela e choramos dizendo que nenhum lobo ia devorar ela. Ela riu, abraçou e beijou cada um de nós na cabeça. Disse que essa história apesar de ter nos assustado, tinha ensinamentos que levaríamos para o resto da vida.
Outra história que ela contava era do dinossauro Cisquinho. Ele andava igual uma galinha, e arrastava os pés. Devia conseguir comida para a vila dele antes do anoitecer, e apesar das dificuldades, ele conseguiu. Todos nós tínhamos apelido que ela mesma dava. E esse era o meu. Ela dizia que eu andava me arrastando porque era preguiçoso. E aí, o apelido pegou.
Nós fomos crescendo e novas crianças se juntavam todas as noites naquele auditório de teatro improvisado que nossa querida
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avó montava para poder encenar as histórias que contava. Algumas dali, outras de fora. Mas aqueles momentos eram mágicos para nós. O mundo perverso de fora daquela comunidade não podia atrapalhar nossa alegria em ouvir aquelas histórias.
Eu tinha 9 anos apenas quando Vô Quim partiu. Nenhum de nós queria acreditar que ele se foi. Vó Brabus não demonstrava tristeza para nenhuma de nós, suas crianças a quem ela tanto amava. Estava lá, linda e vaidosa como sempre, com seus perfumes cheirando a flores. Abraçou a todos nós, e disse que agora o vovô cuidaria de nós lá de cima, de um lugar melhor e com o ar limpo, um lugar onde o criador do mundo cuidará do vovô.
Ela nos contou a história do velho mundo e de como conheceu o vovô. Quando o velho mundo entrou na chamada Segunda Guerra Mundial. Ela acompanhou as notícias de pessoas perdendo seus entes queridos. Apesar de não afetar diretamente onde ela estava, era triste saber que a violência tomou conta de tudo. No fim da guerra, aparentemente seria chegado o momento de paz no mundo. Ela acompanhou movimentos musicais, a arte ir mudando no passar do tempo. Teve filhos que hoje comandam outras comunidades e uma vez por mês vem na nossa comunidade ver ela. Ela acompanhou a chamada ditadura militar, e dessa vez atingiu diretamente ela. Pessoas perdiam seus direitos, artistas não podiam mais se expressar, tudo tinha que ser de acordo com o que os militares queriam. Os filhos dela cresceram nessa época. A ditadura finalmente acabou. E ela estava prestes a ser avó. Havia passado quase 20 anos e os netos dela já estavam na adolescência e foi quando começou o Fim do Mundo. Todos seguiram conforme orientados por ela, fundando comunidades ao redor do mundo destruído para tentar ajudar as pessoas.
Ao fim da história da vida dela e da família dela, abraçamos ela e começamos a chorar. E eu disse que era hora dela chorar, que era importante ela nos mostrar como se sentia. Ela chorou muito a perda do amado, mas todos nós estávamos lá com ela. E quando percebi, toda a comunidade estava lá dando apoio a ela. Seus filhos e netos chegaram umas horas depois, já que a comunicação era feita por
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antigos rádios velhos e demorou de chegar a eles a notícia. No fim, ela fez um memorial para seu falecido marido.
Nunca conhecemos flores, lobos, porcos, galinhas, dinossauros ou bruxas. Apenas vimos desenhos nos velhos livros que ela tinha. Graças a ela, pudemos conhecer como era o mundo antes da queda. E por conta de sua sabedoria e de suas histórias, as comunidades formadas pela família dela eram território neutro. E todos os lados na guerra respeitavam isso. Enquanto estivéssemos nas comunidades, a paz era o que valia. Dessa forma, muitos soldados cansados de uma luta sem sentido, vinham se refugiar na comunidade, ouvindo suas histórias e encenações, passando finalmente a sorrir depois de anos lutando na guerra, para ganhar folego para voltar a lutar.
Era chegada a hora de nos alistarmos. E nós sabíamos que apesar do território ser neutro, ainda tínhamos a obrigação com o país. E nenhum de nós tinha escolha quanto a isso. E sabíamos que se não quiséssemos lutar na guerra, as comunidades que pregam a paz deixariam de ser territórios neutros. E nós nunca permitiríamos isso. Morreríamos todos se precisasse para manter aquelas comunidades livres da guerra, em especial a da Vó Brabus. Mas vovó nunca nos deixaria lutar na guerra. Quando o general veio nos buscar, ela o desafiou e disse que ninguém levaria suas crianças para lutar. Que essa era uma comunidade de paz e foi assim que eles foram criados. O general a respeitava, mas disse que era obrigação de todos nós. Eu tomei a frente e disse que iriamos, mas que entraríamos em contato com ela sempre que possível. Ela chorou muito e disse que enquanto estivéssemos na guerra, para lembrar das histórias dela. E nos deu uma benção para que tivéssemos sempre a proteção dela.
Lá estávamos nós, lutando na frente de batalha. Víamos soldados de todo lado por toda aquela terra sem vida, com construções do velho mundo destruídas servindo de abrigo contra armas dos inimigos. Dia após dia, sem descanso. Sentíamos falta da vovó e das suas histórias. Passamos anos na guerra. Uma vez havia um soldado inimigo com a perna ferida, ele não podia andar. Apenas pediu nossa misericórdia, que ele não estava na guerra por querer. O general inimigo ordena que um tanque enorme lance toda a artilharia naquela construção, ignorando que um de seus homens estava nela.
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Então eu e dois dos meus companheiros, que cresceram comigo, lembramos daquela brincadeira dos porquinhos que Vó Brabus fez conosco na nossa infância. Já estávamos esgotados de dias lutando sem parar, mas carregamos aquele jovem que assim como nós, não teve escolha a não ser lutar na guerra. Procuramos a parte mais rígida da velha construção que poderia suportar o impacto da artilharia do tanque, assim como a casa de tijolos protegeu os porquinhos do lobo mau. No fim, a benção e os ensinamentos de nossa amada avó nos protegeu.
Resolvemos descansar da guerra e voltamos para casa, levando nosso mais novo companheiro, antes inimigo. Ele disse que a anos ouviu falar sobre esse lugar e das histórias encantadoras da Vó Brabus, mas nunca teve oportunidade de ouvir uma. Então, ela o convidou a se juntar a história de hoje. Nessa história, dois reinos inimigos precisavam se unir para derrotar um dragão que queimava todos os vilarejos. Para fazer as armas para derrotar o dragão, um dos reinos tinha o material necessário e o outro tinha o conhecimento de como fazer as armas. E no fim, os dois reinos foram salvos e o mundo encontrou a paz. Vi o soldado com a perna ferida, chorar muito. Ele disse que nasceu em um mundo caótico, que apesar dessa história ser ficção, era o sonho dele que a guerra acabasse. Ela apenas o olhou e disse que na casa dela não existe guerra e que todos são iguais ali. Porém, eu conheço bem a Vó Brabus. Ela não nos contou essa história atoa. Aquilo mexeu muito com nossa mente, principalmente do jovem que não era dali. Ela nos passou sua sabedoria de anos nesse mundo e sobre o que deve ser feito para por fim a essa guerra horrível, usando suas histórias tão alegres para passar a mensagem a nós.
Era a virada do ano e aproveitamos para ficar lá, conversamos e fizemos amizade com o jovem, que agora já estava bem melhor da perna. Estávamos bebendo e sorrindo. Percebemos alguns soldados de todos os lados da guerra se juntarem a nós naquela noite. Eu logo notei que Vó Brabus planejou tudo. Ela contou a mesma história que havíamos ouvido a poucos dias para os soldados ali presentes, que foram convidados pela própria vovó através de mensagem de rádio. Em meios a lágrimas e sorrisos, com os filhos e netos dela presentes,
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resolvemos fazer uma brincadeira de jogar um pó colorido uns nos outros para comemorar o ano que chegava criado lá mesmo na comunidade. Não havia inimigos ali. Só pessoas se juntando com a esperança de um mundo melhor. Vovó, sempre vaidosa, não quis que sujassem ela com esse pó. Ela queria estar limpa com sua roupa pomposa e cabelos dourados prontos para receber o novo ano. Eu tentei jogar o pó nela, e ela deu uma bronca, me botando para correr. Depois que viu o estado em que estávamos de tão bêbados, disse para parar de beber, senão ia todo mundo acabar dormindo de perna para cima. A anos, nenhum dos soldados ali presentes teve momentos tão felizes.
Eis que então é chegado o dia de voltar. Nos despedimos da nossa avó, que agora se tornou avó de todos que participaram do ano novo. Notei ela já cansada antes de partir, porém acreditei que por ser uma mulher tão forte, logo retomaria o folego. Ela me entregou um pacote com sementes e me disse para plantar em um terreno num local específico. Voltei a guerra, mas agora, parece que as coisas mudaram.
Por todo o mundo, soldados contavam a história dos dois reinos e o dragão. Soldados desistiam de lutar. Armas eram destruídas para que não pudessem mais ser usadas. De alguma forma, eu senti que a guerra estava prestes a acabar. Plantei as sementes no local indicado. Conversei com a comunidade via rádio e soube que vovó continuava a contar suas histórias, mesmo já estando cansada. Mais e mais pessoas passaram a aderir a movimentos de paz. Plantavam sementes, colhidas na comunidade, em lugares específicos.
Alguns meses depois que plantei a semente, notei que o céu não estava mais tão escurecido. De alguma forma, as sementes que todos plantamos finalmente deram vida a lindas flores. E essas flores estavam fazendo aquele céu sombrio desaparecer, dando lugar a um lindo céu azul. Voltei ao lugar onde plantei a semente, a pedido dela, via mensagem de rádio. Encontrei todos os meus antigos irmãos de criação lá, e a família biológica dela também. O lugar estava repleto de orquídeas. Quando chego mais perto, vi o corpo dela, imóvel. Não conseguia olhar para alguém tão cheia de vida daquela forma. Desabei no chão, chorei muito, não conseguia falar. Eu daria a minha
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vida pela dela se pudesse trazê-la de volta. Todos ali choravam ao redor dela. Fechei os olhos, eu queria morrer. Não aceitava que um ser tão puro como ela pudesse ser tirada de nós. Mas ela apareceu como uma luz e me disse para ser feliz e todos nos cuidarmos.
Depois que me recompus, percebi que ela já sabia que partiria. Ela planejara tudo. Cada um de nós esteve no momento certo e no lugar certo que ela queria que tivesse. Os que conseguiram suportar ajudar ela nos últimos momentos, estiveram com ela até o fim. E eu, que não suportaria ver ela sofrer, fui poupado, para sempre lembrar dela alegre e com vida. Quando olhei para o céu, vi a imagem dela entre as nuvens que surgia no céu azulado. Li a carta que ela deixara para todos. Ela cumpriu sua missão. De alguma forma, ela sabia que plantar aquelas flores faria a nuvem sombria no céu sumir. E ela sabia que a guerra se acabaria uma vez que sua mensagem fosse espalhada ao redor do mundo. E sabia que todos nós estaríamos com ela neste dia, cada um cumprindo o que ela planejou. Ela nunca aceitaria ser enterrada num lugar feio, por isso, pediu que plantasse as sementes. E foi enterrada junto ao seu amado, num lugar repleto de orquídeas, encerrando seu ciclo neste mundo. Ela partiu, mas nos deixou um legado enorme: ela acabou com a guerra.
Aos poucos, tratados foram feitos e o foco não era mais a destruição, e sim, a construção de um mundo de paz. E nossa esperança de um dia haver novamente vida neste mundo. Sei que a luz daqueles dois que me criaram estarão nos iluminando para sempre do outro lado. Agora, temos um grupo de teatro que espalha as histórias que ela nos contou na nossa infância. E aquele casal nos observa lá de cima, sempre nos abençoando.
Fim? Não, o início de uma era de paz.
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Inspiração
Desde pequeno, sempre ouvi muitas histórias de minha avó, Ela me contava os contos de fadas do jeito dela. Encenando as coisas, imitando as bruxas. Isso me ajudou a criar os contos que escrevo hoje. Infelizmente, ela se foi em 2023, deixando um belo legado no mundo. Esse conto é uma homenagem a ela, uma mistura de ficção e cenas reais.
Sobre a obra
Esse texto fala de uma Terra diatópica, destruída pela guerra. Nesse mundo, apenas as histórias da Vó Brabus é que mantém as pessoas unidas por um breve momento, enquanto estão em território neutro, longe do campo de batalha sem sentido. A história é contada por um personagem narrador, que mostra todos os momentos que ele passa pelos olhos dele.
Sobre o autor
Sou formado em Produção Multimídia. Em relação a artes manuais, trabalho com artesanato em EVA e biscuit e cenários em miniatura. Sou desenhista, escritor e cosplayer. Também faço arte digital, que envolve games, animação e 3D de uma forma geral. Gosto de criar personagens desde sua concepção até levá-lo a mídia final.
Autor(a): ANTONIO MIGUEL MACEDO FIGUEIREDO (Miguel Mario)
APCEF/BA
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