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Vida em movimento
Vida em movimento
Meu nome é James Natanael, nasci no Peru em 3 de novembro de 1972, mais precisamente na cidade de Lima, a capital. País maravilhoso, pessoas alegres, ar puro, bom, pelo menos é o que dizem, só morei lá durante 4 dias, assim que o Hospital deu alta para a mamãe entramos no trailer e papai pisou fundo no acelerador.
Casal bacana, papai era escritor de contos, tinha destaque todas as sextas-feiras na última página do “ El Jornalístico”, o jornal mais lido na época, mamãe por sua vez era consultora literária, papai era seu único cliente.
Eles adoravam andar por aí, motivo pelo qual, sou meio Peruano. Certo dia resolveram dar uma voltinha com o trailer novo, andar uns 15 ou 20 km já que mamãe estava de 9 meses, foram rodando, rodando e São Vicente foi ficando para trás, quando mamãe sentiu as contrações foram correndo para o Hospital Central, de Lima.
O importante pra eles era rodar, rodar muito até os pneus se acabarem. Em Agosto de 1977, 350.000 km depois, o pneu dianteiro esquerdo não aguentou rodar mais, estourou no meio da rodovia e soltou-se da roda, perdemos o pneu, gritou mamãe, perdemos o controle, gritou papai. O trailer tombou, mesmo após as tentativas inúteis de papai, o que nos fez despencar barranco abaixo, papai nos tirou rapidamente e enquanto mamãe e eu ficamos estáticos, fitando o que sobrou do trailer papai olhava ao longe o pneu que insistentemente quicava estrada afora, com um olhar estranhamente satisfeito, acho que pelo fato do pneu continuar rodando, rodando, sei lá.
Após o episódio ficamos mais caseiros, papai resolveu investir também em pequenos poemas e mamãe, por sua vez expandiu a consultoria, mais atenção ao papai agora.
Foi nesta época, ao som dos LPs de Rock que descobri que meu nome era uma homenagem à Janis Joplin.
Papai aprendeu à apreciar Rock in Roll com a mamãe e mesmo sendo um cidadão letrado jamais havia lido o nome Janes Joplin, apenas ouvido no rádio e, nem se dera conta de que Janis fosse uma mulher, James Joplin, só o papai mesmo.
Já Natanael, fora o tataravô de mamãe, se bem que, nem ela tinha tanta certeza disso, dois nomes e nenhum sobrenome, soava como a liberdade, talvez, a mesma do pneu quicando estrada à fora.
Em 1984, na escola, descobri que adorava desenhar, pena que a senhora Bolivares não compartilhava da mesma opinião que eu, me disse que aquelas formas bizarras não passavam de rabiscos, que eram horríveis, e, me fez prometer que pararia de desenhar, deixando esse tal de cubismo para o tal de Picasso, disse ela, e, como ele, talvez alguém admirasse a minha obra depois da minha morte.
Confesso que fiquei um pouco perdido após este dia, na época, sequer sabia o que era um feedback.
Em 1986 comecei a trabalhar na venda da Dona Emília, nesta época descobri que não havia só uma qualidade de batata. Dona Emília ficava horas falando sobre as batatas, batata lisa, lavada, vermelha, doce, era batata para todo lado, a princípio fiquei feliz quando Dona Emília descobriu as várias qualidades de feijão, adeus tubérculos, pensei comigo, que triste.
Foi na venda da Dona Emília que juntei uns trocados e em 1988 comprei um Diplomata caindo aos pedaços, em 1989 já era um carro e em 1990 estava lindo, “envenenado” como falávamos na época, os cursos de mecânica por correspondência valeram à pena.
Desfilava pra lá e pra cá todos os dias com meu Diplomata, certo dia, numa rodovia recém reformada acelerei o máximo que pude, 220km/h marcava o novo velocímetro, que sensação boa, sensação esta que durou exatos 4 segundos, foi quando ouví um estouro e flagrei o pneu dianteiro esquerdo fugindo da roda.
Perdi o controle e minhas investidas inúteis ao volante não alteraram a minha rota rumo ao barranco, já lá embaixo, fitei o horizonte e acompanhei o pneu estrada afora, quicando, rodando, rodando. Peguei-me com um pequeno sorriso no rosto, lembrei-me do papai na hora
Dona Emília me demitiu da venda, disse que depois deste susto se sentira responsável pelo meu acidente e que não queria contribuir mais com isso.
É, talvez com 3 ou 4 anos de salários eu conseguiria reconstruir o carro e efetivamente me matar, ou morrer de fome com aquela ninharia, bom, a esta altura não podemos condenar Dona Emília, que estava expandindo seus negócios com miniaturas de personalidades esculpidas em batatas com detalhes em feijão.
Infelizmente sua habilidade em Marketing não era das melhores, ainda não havia vendido uma só unidade do Kit Gina, uma caixinha de palitos de dentes e uma escultura da própria Gina esculpida na batata, talvez a batata lisa não fosse a melhor opção ou o feijão carioca no lugar dos olhos não lhe desse a expressão da fotografia.
Talvez Dona Emília devesse abandonar este projeto poupando assim os clientes, as batatas e a sanidade desta arte um tanto peculiar, olhando bem, a cabeça do Michael Jackson na prateleira do canto também não era das melhores, mesmo não sabendo exatamente qual fase do músico que ela tentou eternizar no tubérculo, definitivamente Dona Emília não era muito boa com as mãos, nem boa com a cabeça, a dela.
Com o dia de folga fui ao Hospital procurar a Vanusa, ela foi a enfermeira que cuidou de mim no Hospital onde fui levado após o acidente, Hospital Central marcava a velha placa.
Adentrei em direção ao Pronto Socorro, não à vi no setor, aguardei no banco de madeira de um corredor lateral, ao lado de uma daquelas máquinas de café, coloquei o cartão e apertei o botão do Capuccino, digite sua senha, deve ser bom um Capuccino de R$ 14,00 pensei eu, nada demais exclamei no segundo gole.
Ainda ali com o copo já quase vazio surge Vanusa, se dirigindo à máquina de café, apertou o botão do café com leite, após ter inserido uma daquelas fichas que os funcionários ganham, isso explica o Capuccino de R$ 14,00, pensei.
Levantei e fui ao seu encontro, Vanusa, chamei num tom moderado, ela demorou um ou dois instantes para me reconhecer e em seguida perguntou: Como vai James, bem disse eu. Havia um clima meio constrangedor entre nós, como havia adormecido no caminho para o Hospital, acordei na maca com os braços dormentes, 15 minutos depois descobri que Vanusa havia me administrado anestésico, inalado junto ao oxigênio, era uma maneira de evitar as investidas dos tarados e dos malucos, não concordei muito com isso mas ela disse que era muito comum esse procedimento na medicina, talvez algum Dr. apaixonado pelo éter no século XIX, mas, parei de questioná-la quando ela me comentou sobre meus delírios enquanto dormia, rodando, rodando dizia eu, melhor mudar de assunto.
Agradeci os cuidados e segui meu caminho, afinal, as palavras garoto, rapaz e jovem saíram diversas vezes quando se referia a minha pessoa, acho que não tinha chances, boa pessoa a Vanusa, mesmo com seus anestésicos.
De volta à realidade, e com os classificados na mão, fui à procura de um novo trabalho, a experiência na venda da Dona Emília não enfeitava em nada meu currículo, minha nacionalidade meio peruana também não, já que todos os entrevistadores me esperavam “ablar” alguma coisa após lida esta informação na ficha, meu visual não era dos melhores e a fusão do perfume Avon com loção pós-barba não tirava sorrisos de ninguém, e pra falar a verdade, nem separados.
Com tantas negativas pensei em me espelhar no papai e escrever alguns contos ou histórias em quadrinho.
Fiquei horas debruçado na escrivaninha mas não pensava em nada de novo, tinha história de tudo neste mundo, monstros sem cabeça e com cabeça também, vampiros maus e bons também, criaturas que andam à noite e de dia também.
Monstros mitológicos, pensei, droga, já exploraram demais a mitologia, tanto quanto os trabalhadores chineses, bom, talvez.
Desastres naturais, tufões, maremotos, geleiras, maldito Al Gore.
Super heróis? Algum homem inseto? Bom, o que não virou filme virou sátira de filme.
Não heróis não vai dar, já usaram até o nome de Homem-Cueca.
Hum, contos adultos? Não, seria um fiasco, além de ter apenas 0% de experiência aposto que a Emmanuele já contou todas as histórias possíveis e inimagináveis.
Desistindo desta idéia, vamos pensar, o que sei fazer? Trabalhar numa venda bizarra e reconstruir Diplomatas, o que mais? Será que tantos documentários sobre a reprodução dos leões marinhos vão incrementar meu currículo, divago.
De volta aos classificados e com menos ambições, listei tudo o que era possível fazer sem a mínima experiência e que não envolvesse senhoras “calientes” da 3ª idade.
1 – Assistente de pesquisas bioquímicas.
Sem experiência, de fácil comunicação, disponibilidade de horário, adaptativo, boas condições de saúde para trabalho em projeto da indústria farmacêutica.
Sem uma segunda opção lá fui eu, lugar bacana no 15º andar no centro da cidade, não havia muitos candidatos na sala, uhu, mais chances pra mim, a bela recepcionista me trouxe a ficha. Nome, endereço, telefone, nada demais até aí, só não entendi algumas perguntas estranhas depois disso.
4 - Você tem medo de insetos e animais?
5 – Tem algo contra as usinas nucleares?
6 – Gosta de alimentos exóticos?
7 – Já ficou nu em uma sala com outras pessoas enquanto era picado por abelhas?
Confesso que não soube bem o que responder, após o preenchimento da ficha eu e mais dois rapazes fomos convidados para entrar em outra sala, acho que os outros candidatos fora reprovados.
Nesta sala um homem de branco fez um belo discurso com a ajuda de um projetor de slides, falou sobre a PlaceboFarma, sobre a história da empresa, os projetos sociais, as pesquisas, o futuro, falou sobre tudo, e no final mostrou qual seria o papel dos Assistentes de Pesquisas Bioquímicas, me pareceu um trabalho simples, no projetor estes profissionais apareciam logo após os ratinhos brancos de olhos vermelhos, alguns tinham espasmos ou coisa parecida, percebi que o nome Assistente de Pesquisas Bioquímicas poderia ser substituído por Cobaia, achei perigoso, mas com um discurso daqueles qualquer um assinaria aquele contrato.
Em 1995, após a frase “Os carros brasileiros são carroças” vi uma oportunidade de trabalhar em algo que gostava realmente, já sem condições de me dedicar à função de Assistente de Pesquisas Bioquímicas depois da perda de um pulmão, comprometimento do fígado, taquicardia, insônia, diabetes, um pequeno tumor perto do córtex, reumatismo e sem saber se restava algum sangue não sintético circulando nas minhas veias ou se ainda era capaz de produzir esperma após tanta ordenha pra os mais variados exames me desliguei da PlaceboFarma.
Entrei como piloto de testes numa grande indústria automobilística, com a abertura do mercado todos estão correndo contra o tempo para homologar modelos.
Dirijo cerca de 1000 Km por dia, é teste de suspensão, freio, resistência, sobe, desce, desce sobe.
É cansativo, mas eu gosto.
Em 1997, devido à minha experiência fui contratado por uma fabricante indiana que tem planos ambiciosos para com o Brasil, carros bonitos, compactos e econômicos.
Era o terceiro dia de testes, um teste de duração de apenas 300Km numa velocidade constante de 110Km/h, nada demais pra mim, já ultrapassara metade do teste quando fui abduzido por aquele som característico, lá se foi o pneu dianteiro esquerdo, tive reações rápidas ao volante, o que foi inútil durante o capotamento, enquanto me arrastava pra fora do carro vi o pneu ao longe, quicando e quicando, me lembrei do papai na hora, e da Dona Emília também.
Após resgatarem o computador de dentro do carro, que além das informações planejadas também registrou o Crash Test surpresa, fui resgatado e levado ao hospital.
Hospital central de Indaiatuba dizia a placa, apaguei e acordei com os braços dormentes, imagino que a Vanusa deve estar ministrando aulas em algum curso ou faculdade.
O Dr. Sanches pareceu triste ao me informar do meu grave estado de saúde, coração, fígado, pulmão e blá blá blá. Sei de tudo isso Dr. Quero saber do acidente de carro, alguma seqüela? Aparentemente alguma coisa no córtex, precisamos de mais exames.
Agradeci friamente enquanto me levantava pra ir embora.
De volta às pistas, mas antes uma consulta com o médico do trabalho, parecia meio pasmo com os exames que levei, taquicardia, fígado, sangue sintético sussurrava.
Não julguei relevante contar pra ele que nada daquela lista se tratava de sequelas do acidente, não apto, carimbou ele na ficha, assine este acordo polpudo, disse o advogado da empresa.
Sem trabalho, mas agora com um saldo vigoroso na conta corrente sei exatamente o que fazer.
Comprei um trailer, não como o de papai, moderno, tecnológico, tem até GPS no painel, digito Lima, Peru.
Lá vou eu, como tudo começou, estrada a fora, rodando, rodando.
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Inspiração
Uma narrativa leve, empática, descontraída, estes foram os pontos iniciais e prioritários que desejava transcrever ao papel, e este foi o grato resultado.
Sobre a obra
A ideia que o próprio personagem principal contasse sua história, sobre sua ótica, de maneira leve, empolgante e gentil, despertando o leitor a devorar as linhas com um sorriso no rosto, absorvendo o teor cômico da narrativa de bom grado, mas, sem se desprender de situações do cotidiano, o trabalho, as relações humanas, frustrações e alegrias
Sobre o autor
Amador, entusiasta, amante das artes visuais e escritas. Alguém que apenas quer contribuir e retribuir um pouco toda a riqueza cultural que nos foi dada ao longo dos séculos.
Autor(a): CLEBER BOMFIM DOS SANTOS (Cleber)
APCEF/SP