Justas Conversas

"É claro que a justiça, sendo cega, não vê se é vista, e então não cora”. - Machado de Assis


JUSTAS CONVERSAS Luís Lins

Doutora, esse processo aí que eu mandei o número para a senhora, o advogado está dizendo que outros processos que ele moveu em outras varas, do mesmo período, já foram todos solucionados e que este ainda não teve nem a primeira audiência. Ele está questionando essa demora.
Meu caro, você é diretor da vara para resolver essas questões. Quem ele pensa que é para questionar isso ou aquilo? Diga a esse advogado que se ponha no lugar dele e que não venha me apressar, nem querer me ensinar a trabalhar. Eu não tenho que dar satisfação sobre a minha forma de trabalho. Não admito. Ouviu? Não admito. E olhe! Tem mais: cancele a audiência e jogue para seis meses depois, só por causa dessa ousadia.
Mas, doutora, já adiamos duas vezes e agora está marcada para o final do próximo ano, antes do recesso de dezembro. Como a senhora só marca audiências para a última quarta-feira de cada mês, isso tem deixado muito distantes as audiências.
Não pode. Quem autorizou marcar para novembro? Eu viajo no final de outubro. Jogue para março do ano seguinte.
Mas temos outras audiências em março.
Efeito dominó. Adie as outras também. Mais próximo da data eu vejo isso. Talvez eu peça uma perícia, pra ganhar tempo. De que trata o processo? … espere. Não me responda. Não quero me preocupar com isso agora. Cancele as audiências deste mês também. Eu ainda preciso examinar os processos deste mês.
Sim, senhora.
Você sabe que eu só vou aí na vara quando eu tenho audiência e o resto eu faço daqui de casa. É pra isso que os processos são eletrônicos, não é? Ou você está querendo insinuar que eu fico aqui sem fazer nada?
Não, senhora. Sei do trabalho da senhora. Sobre o processo eletrônico, ele foi criado com o objetivo de agilizar as decisões, doutora. Todo mundo sabe disso.
Pois é. Imagine se eu tivesse que ir aí apanhar esses processos fisicamente?
Muita gente reclamando.
Reclamando de quê? Não me preocupo. Administre. Justifique a quantidade de processos. Por que essa pressa toda? Isso não é assim. A justiça é lenta. Todo mundo sabe disso.

Doutor, como é que está o meu processo?
Estamos ainda aguardando a audiência inicial.
Mas como pode? Já faz dois anos que a gente entrou com a ação. O senhor deu entrada mesmo?
Claro. Eu tenho lhe enviado o andamento do processo.
Mas que andamento? O processo não anda!
Eu tenho ido lá na vara pelo menos uma vez por semana. O diretor diz que são muitos processos.
É justo isso? Por que você não fala com essa juíza?
Ela não recebe advogados.
Isso é possível? Denuncie a juíza.
Seria pior.
Pior do que isso?
Talvez.
Não tem como recorrer?
O recurso só acontece depois de uma decisão.
Mas se não há decisão, como se faz? Eu já fui injustiçado na relação com a empresa, aí recorro à justiça, pra corrigir a injustiça cometida pela empresa e dá nisso. Mais injustiça.
Pois é. Estamos de mãos atadas.
Eu mesmo vou lá, então.
Pode piorar a situação.
Acho que vou arriscar. Não sei o que poderia ser pior do que a situação atual. A justiça não é um direito do cidadão?
Talvez ela nem receba o senhor também. Ela alega que não conversa com as partes antes da decisão. Na verdade … nem depois. Tá tudo parado por lá. O senhor quer que eu tente um acordo com a empresa?
Mas o senhor disse que as chances de ganhar tudo o que pedimos seriam muito boas.
Seriam, sim. Se fosse em outra vara, eu aconselharia esperar pela audiência de conciliação, para pensar num acordo. Mas nesse caso, talvez fosse melhor tentar um acordo.

Doutora, estou gostando de ver sua atuação. A senhora já conseguiu adiar duas vezes a audiência daquele rapaz. Continue assim, para forçar um acordo. É essa a ideia, não é?
Na verdade, eu não fiz nada ainda. Nós demos sorte de cair nessa vara. Lá as coisas são bem lentas mesmo.
Por quê?
Não sei. Mas todo mundo sabe disso.
Deixe quieto então. Tá funcionando. Se o advogado dele lhe procurar, coloque o menor valor possível.
Eu lhe aviso. Mas acho melhor nós só falarmos em acordo depois da audiência de conciliação. Se fosse em outra vara, eu aconselharia fazer logo um acordo, pois temos poucas chances na defesa da empresa.

Doutora, sabe aquele processo que eu entrei há dois anos contra a companhia que a senhora representa, que tá lá na vara… aquela, sabe?
Ah, sim. Sei.
Você sabe que está tudo provado lá nos autos e que vocês têm pouca chance de defesa. Não sabe?
Isso é o que você diz, doutor.
Você sabe disso também. Todo mundo sabe disso. Só não pode admitir para mim, aqui. Eu lhe entendo. Eu faria o mesmo.
Você não veio me procurar para discutir as estratégias de acusação e defesa. Qual é sua proposta?
Tem acordo?
Da parte da empresa, pode até haver interesse em acordo, mas só depois da primeira audiência.
Aí talvez o meu cliente não tenha mais interesse.
Você sabe que a maioria dos processos daquela vara acabam chegando a um acordo antes do julgamento, não sabe?
Todo mundo sabe disso. Mas... e então? Qual é a sua proposta?
Eu não tenho proposta. Mas talvez, se eu levar para a empresa, eles aceitem pagar o equivalente a 10% do valor que você pediu na ação, antes mesmo da audiência.

Detesto esse negócio de portal da transparência, esses relatórios que tentam impor produtividade. Nosso trabalho não é por produção, não pode ser medido por quantidade de peças, quantidade de decisões. Desculpa! Sei que deve estar puxado aí, mas estou te ligando para desabafar, sabe? Estou chateada com essa história toda. Onde está a associação dos magistrados, pra defender nossos interesses numa hora dessa? …Quais? Esses, por exemplo: acabar com essas metas bestas e deixar a gente trabalhar em paz. Daqui a pouco estão querendo definir a quantidade mínima de folhas numa decisão. É por isso que tem colega usando a inteligência artificial para encher linguiça nas decisões. Comigo não. Comigo sai tudo daqui, olha, da minha própria inteligência. Como é que está na sua vara? Sei… Sim… É? E como é que você faz? … Sei. Pois Aqui o único indicador positivo é o de conciliação prévia. Como? Ah, é que eu dou uma lida e, se for besteira, eu deixo esfriando, pra ver se as partes se entendem sozinhas. Daí vêm os acordos antes da audiência. Gosto mesmo é de homologar acordos que já chegam prontos. Aí eu não preciso nem ver esses advogados metidos a besta. Tem alguns deles querendo questionar porque eu demoro pra marcar audiência. Eu não admito isso. Como é aí na sua?… Sei… seja qual for o valor? … ah, pois eu me dedico às questões maiores. Essas picuinhas que às vezes chegam… sei não, viu. Acho que já deviam ter aumentado o valor de pequenas causas… Ah, eu acho. Ocupar a justiça com besteira. É por isso que dizem que a justiça é lenta. Quem tá fazendo mais rápido deve estar decidindo de qualquer jeito. Tem decisão que quem faz pra mim é o diretor. Eu mudo uma coisa ou outra, mas ele está cada vez melhor; já sabe como eu penso… É?… ah, pois eu confio. Estou treinando ele nisso. Tenho trabalhado demais e estou me dedicando pouco à família e aos amigos… OK… mas vamos ver se a gente se encontra, garota! Nunca mais lhe vi lá no clube. … Certo…Um beijo.

Doutora, eu não consegui antecipar aquela consulta que a senhora me pediu.
Como assim? Eu mesma vou ligar para lá.
Olá. Meu assistente marcou uma consulta para mim, aqui pelo WhatsApp, mas eu queria ver se consigo antecipar. É urgente e está muito distante. Não posso esperar tanto. … OK. Eu aguardo você falar com ele… Como assim, cancelada? Você mostrou meu nome, minha mensagem? Falou que é urgência?

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Inspiração

O conto inspirou-se no senso comum de que “a justiça é lenta” e se baseia em relatos soltos de pessoas que um dia precisaram recorrer à Justiça, para fazer uma caricatura dessa realidade. Essa percepção do cidadão, usuário da Justiça, ao longo do tempo, vai formando um certo conformismo com o status quo, que atrasa os movimentos de mudança.

Sobre a obra

O conto se desenrola totalmente em diálogos, no cenário fictício e irônico em torno de um determinado processo judicial, e vai apresentando os sentimentos dos atores do processo, sob os seus diferentes pontos de vista, permitindo a cada um deles insurgir-se sobre a poderosa engrenagem, dando-lhe a oportunidade do contraditório (do jargão jurídico).

Sobre o autor

Após uma longa carreira na CAIXA, dedico-me agora com mais afinco às artes plásticas e à produção literária. Nas artes visuais, especialmente na pintura, mas também em fotografia e vídeo, procuro traduzir em imagens a beleza de nosso cotidiano. Em literatura, uso a palavra para retratar a beleza das coisas simples de nosso mundo.

Autor(a): LUIZ HENRIQUE LINS BARROS DE CARVALHO (Luís Lins)

APCEF/PE