Ancestrais

Ancestrais

1961 - As árvores eram altas e o mato rasteiro teimava em invadir a estrada. Minha avó materna ia mais à frente, rápida e elegante. Eu a seguia tentando acompanhar seus passos adultos. A claridade da tarde já não estava tão nítida, mostrando que o escuro logo tomaria conta de tudo. Os sons característicos de animais noturnos saudavam a noite que não demoraria a chegar. Não sentia medo, apenas caminhava apressada. Talvez o caminhar daquela senhora fosse no mesmo ritmo que o meu, não me lembro. Não sei ao certo qual era minha idade e nem para onde íamos.
É mais uma sensação que uma lembrança.

1964 - A caminhada no meio da floresta, era inclinada e escorregadia. As pedras tinham uma espécie de limbo que demonstravam pouco uso daquele lugar. Subíamos entrando na mata fechada que depois de um certo tempo descia em direção ao descampado e entrava na plantação agrícola. A claridade do dia podia ser percebida através das copas das árvores e do canto alegre dos pássaros. Não era um espaço geográfico muito longo, mas o suficiente para delimitar propriedades. Desta vez eu estava com meu pai.
É uma sensação guardada na memória que abre uma porta para a lembrança.

Em ambos os momentos ia tranquila, segura, sem medo e livre de regras, já que estava no meio da mata e acompanhada por quem conhecia o lugar. Apenas saltitava tentando acompanhar os passos adultos, ora feliz, ora cansada. Na floresta não houve ritual, nem encontros com animais ou seres desconhecidos. Naqueles momentos eu apenas passava por ali sentindo o cheiro da mata, observando os cogumelos que cresciam nos troncos úmidos, o escuro das folhas caídas no chão molhado, os cipós pendurados nos galhos, o colorido de flores estranhas e ouvindo o barulho dos animais silvestres.

No espaço marcado pelo tempo, era só mais uma caminhada com familiares e eu apenas fazia parte daquilo tudo.

Minha ancestralidade indígena se conectava com a natureza, com os cheiros, livre e sem medos. Meus ancestrais indígenas passaram por ali sem derrubar nada, meus ancestrais conquistadores precisaram mais que uma trilha. Eles se fundiram num conhecimento mútuo, se amaram e se odiaram, houve colaboração e abuso, uns morreram assustados e outros felizes. Uma mistura de sentimentos palpáveis na floresta que viu tudo acontecer. Eu caminhava sem medo e sem entendimento das mudanças.

Aquela estrada aberta pelo conquistador, primeiro foi engolida pela floresta que tomou o que era seu, e anos depois virou terra batida engolida pelo progresso. As árvores grandiosas foram cortadas, vendidas, transformadas. Hoje a floresta já não existe mais, nem lá, nem cá. Só plantação agrícola e outras culturas impostas pelos conquistadores. Sem caminho, sem trilha, só pedras expostas onde um dia teve uma floresta.

E agora? - Faz quanto tempo que estou andando por aí? Correndo feliz pela floresta atrás do conquistador?
Talvez sempre, talvez para sempre.
Hoje em dia, de vez em quando, descendo uma rua asfaltada de uma cidade qualquer tenho a sensação de estar andando sozinha na mata fechada. Sei que lá embaixo tem um rio, com águas límpidas, que escorrem tranquilas no meio das pedras Ouço as folhas das árvores dançando ao sabor da música que vem da pequena cachoeira. Eu faço parte daquela floresta que não existe mais.
E esta sensação não é uma lembrança, ela é um sentimento real.

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Inspiração

A ideia de escrever sobre memórias, surgiu na aula de uma Oficina Literária, "De Próprio Punho", realizada em 2019.

Sobre a obra

O conto foi escrito em primeira pessoa, numa espécie de diário, descrevendo alguns momentos que fazem parte de minha infância. As reflexões tem como objetivo relatar a mudança que ocorre no meio em que vivemos e as sensações que carregamos sem perceber.

Sobre o autor

A leitura sempre esteve presente em minha família. Aprendi a ler outras obras além daquelas obrigatórias no currículo escolar. Com Zélia Gattai adquiri o gosto por genealogia, o que me levou a descobrir minha ancestralidade e a vontade de escrever memórias. A Oficina Literária me ofereceu recursos para melhorar a escrita. Sigo aprimorando.

Autor(a): IRENE PINTO DE CARVALHO (Irene Pinto de Carvalho)

APCEF/PR