A chuteira prateada de Pipoca

A chuteira prateada de Pipoca



- Meu Deus! Faça que um dia eu tenha uma chuteira prateada igual àquela do Neymar!
Toda noite, antes de dormir, Pipoca fazia este pedido. Morava com a avó e os irmãos num casebre pobre na favela do Rato Seco na Barra da Tijuca, aquele aprazível bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro. Dormia e acordava pensando em futebol. Esta era a sua grande paixão. Uma vez tinha ido ao Maracanã com o seu pai, um pouco antes dele morrer com um tiro numa briga de traficantes. Esta era a imagem mais bonita que tinha gravado em sua mente na sua ainda curta vida. Em pé na arquibancada, não sabia se olhava as torcidas, fazendo aquelas coreografias, ou se prestava atenção nos jogadores dentro de campo.
O apelido Pipoca tinha sido dado pelos garotos mais velhos da favela. Sempre que precisavam completar um dos times da pelada, eles chamavam aquele garoto arisco, bom de bola, que vivia rondando o campo, implorando por uma vaga. O problema era que os garotos mais velhos não gostavam de ser driblados por um menino que não devia ainda ter dez anos de idade e apelavam para o jogo violento. Nesses momentos Pipoca dava o drible e pulava para não levar o sarrafo. Pulava igual pipoca, dando origem ao apelido. Naquela semana estava tendo um torneio de futebol mirim entre os ricos condomínios da Barra da Tijuca. O time da favela, com a ajuda de um porteiro de um dos condomínios, que morava no Rato Seco, tinha conseguido a sua inscrição. A favela não deixava de ser um condomínio fechado onde ninguém entrava. Os traficantes não deixavam ninguém entrar, nem mesmo o homem da companhia de energia elétrica. Não havia condomínio mais fechado.
Pipoca acordou cedo. Aliás nem dormiu direito. Levantou da cama e saiu catando a camisa da seleção brasileira no armário sem portas do quarto que compartilhava com mais cinco irmãos. Encontrou a camisa gasta e um pouco apertada. Ele havia crescido no último ano. Olhou com admiração o número onze nas costas. Naquela manhã quente de primavera iria jogar o jogo da sua vida. O time infantil da Favela do Rato Seco ia enfrentar o time do Condomínio Flores Silvestres na abertura do Torneio Anual de Futebol Mirim da Barra da Tijuca. Apanhou o calção largo, que pertencia ao irmão mais velho e saiu de casa sem tomar café. Que café?
O jogo era sempre na casa do adversário, já que nenhum dos garotos ricos jogaria naquele lamaçal que era o campo de futebol da favela do Rato Seco. Além disso, ainda tinha o problema dos traficantes. Eles não deixariam mesmo ninguém entrar. Já começavam o torneio em desvantagem. O outro problema era conseguir entrar nos condomínios para jogar, pois os porteiros sempre implicavam com aquele Fiat 147 com um monte de garotos pobres dentro. Seu Manuel, dono de uma birosca na favela, empilhava a garotada no seu surrado carro, aonde todos iam, orgulhosos, para os campos adversários. Os garotos do Flores Silvestres pareciam ter o dobro do tamanho da turma da favela. Técnico, preparador físico, uniforme impecável e, acreditem se quiser, lindas chuteiras. Iguais àquelas que o Neymar usava no anúncio de televisão. Sentiu uma ponta de inveja, mas logo esqueceu. Olhou para o seu time. Todos descalços. Zé Meleca, magro que nem um gafanhoto, acendia um cigarro e todos aproveitavam para dar também uma tragada. Pipoca rejeitou a gentileza. Jogador de futebol não fumava. Olhou para o outro lado e estavam todos fazendo alongamento enquanto tomavam uma garrafa com suco de laranja. Uma garrafa para cada um! O campo então era uma maravilha. Grama sintética. Dava até vontade de comer de tão bonito que era. Pipoca achou melhor segurar o calção que insistia em cair. O juiz já apitava chamando os times para o início do jogo.
A Favela do Rato Seco resistia bravamente. A torcida formada pelos pais dos garotos do condomínio era toda contrária. Fazia pressão em cima do juiz o tempo todo. Pelo lado do Rato Seco apenas Seu Manuel gritava sozinho. Os dois zagueiros adversários eram gêmeos, gordos, com as bochechas rosadas, e tinham o dobro do tamanho de Pipoca, mas o primeiro tempo terminou zero a zero. Enquanto o time do Flores Silvestres era massageado pelo preparador físico, entre um gole e outro de suco, o pessoal da Favela do Rato Seco procurava uma bica ao lado do campo para matar a sede.
Lá pelo meio do segundo tempo, Bodinho enfiou uma bola para Pipoca que partiu para o gol. De repente sentiu alguma coisa escorregando pelas pernas. Era o maldito calção. Caiu estatelado no chão enquanto a bola ia mansamente para as mãos do goleiro adversário. Olhou para cima e viu os dois zagueiros gordos apontando para a sua cueca furada. Riam desbragadamente. Pipoca tentou amarrar o calção, mas o cordão tinha arrebentado. Ficou com raiva. Logo no jogo da sua vida! Tirou o calção e voltou de cuecas. Estava morrendo de raiva. O seu time, sem alimentação, já estava no bagaço. Poucos tinham tomado o café da manhã. O juiz, porém, foi duro. Mandou que saísse do campo. Só podia jogar de calção. Um garoto que estava assistindo o jogo se condoeu da sua situação e deu um pedaço de barbante para Pipoca amarrar o seu calção. O jogo já estava acabando. Zé Meleca chutou para frente tentando se livrar do perigo. Pipoca recebeu a bola de frente para os dois zagueiros. Lembrou-se do Galvão Bueno gritando na Copa do Mundo: Vai garoto! Passou o pé sobre a bola, fingiu que ia por um lado e puxou para o outro. Era a sua versão do drible do elástico. Aquele que Ronaldinho e Romário gostavam de dar. Os dois garotos gordos se esbarraram e caíram estatelados no chão. Pipoca partiu livre para o gol. No campo em silêncio apenas Seu Manuel gritava. Com a mão esquerda segurou o calção para não correr riscos. Ainda se deu ao luxo de driblar o goleiro. Jogou a bola de um lado, fingiu que ia mudar de direção, e correu pelo mesmo lado, como Romário na eliminatória da Copa de 94 contra o Uruguai. Neste momento soltou tudo. Entrou no gol descalço e mostrando a cueca furada. Desta vez, os dois garotos gordos não acharam nenhuma graça naquela cueca furada, que, deitados no chão, viam entrar pela baliza adentro. O Maracanã estava cheio e Pipoca correu para a torcida apontando com o dedo indicador.

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Inspiração

Eu moro num condomínio de casas e uma vez presenciei um jogo de futebol realizado entre garotos do condomínio onde morava, e ainda moro, contra um time de garotos de uma favela próxima.

Sobre a obra

O que me inspirou escrever esse conto foi ver a superação que os garotos mais pobres tinham, mesmo com poucos recursos técnicos, como por exemplo tênis e chuteiras,

Sobre o autor

Eu atualmente tenho 32 livros publicados, sendo que cerca de 20 são livros técnicos sobre informática em geral e atualmente especificamente sobre qualidade de software. O vício por escrever me levou também a publicar livros sobre romances e contos.

Autor(a): EMERSON RIOS (Emerson Rios)

APCEF/RJ