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A camisa xadrez
A camisa xadrez
O despertador tocou normalmente aquela manhã. Ao me lembrar que era dia de festa junina no trabalho, decidi levantar sem enrolação. Pendurei a camisa xadrez branco com preto e cinza. Tinha comprado um daqueles ferros estilosos de passar a vapor, aqueles que dispensam uma mesa de passar. Parece brinquedo de criança, mas não é. É difícil chegar aos detalhes das dobras, é fácil se queimar com ele.
Dez minutos depois, a camisa xadrez estava passada. Eu olhei para ela como se o tempo tivesse parado e foi aí que tudo aconteceu. Na verdade, não o tudo, mas o nada. Um imenso vazio. Eu olhava para a camisa, olhava para a casa, para os cachorros e as vasilhas que estavam sobre a pia: eu não conseguia pensar em nada, eu não sabia de nada, nada se conectava ou estava conectado comigo. Havia um imenso vazio em minha mente. Vazio sem cor, sem sentimentos, sem intensidades, uma infinita pausa, o oco de uma câmara de ressonância magnética. Diante daquela camisa xadrez, eu pausei.
Depois da consulta com minha psicóloga, providencialmente marcada para daí 15 minutos, on-line, eu conseguia ter dois pensamentos em mente: o primeiro era, nesse contexto de vazio, me perguntar e lembrar do que estou fazendo agora. E, só após o término da ação presente, me perguntar o que vou fazer a seguir. "Vou passear com os cachorros", defini. Saí do prédio e fiz o trajeto comum, cuidando para me desviar de objetos no caminho. Era como se eu fizesse tudo mecanicamente, e repetindo pra mim mesma: "estou passeando com os cachorros." E quando a cabeça começava a ficar confusa, repetia novamente. E de novo. E várias vezes.
Após o passeio, me perguntei "o que fazer agora?" A resposta foi simples: "Eu preciso de ajuda médica pois isso não é normal". Atravessei a rua e fui a uma clínica de psiquiatria e psicologia. Consegui uma consulta. A mente vazia. Toda frase que eu tentava formular saía sem sentido. Meus pensamentos não tinham começo, meio e fim. Ficavam soltos. Etéreos. Às vezes faziam sentido, de alguma forma. Mas na hora de verbalizar, o significado sumia. A médica muito inteligente explorou da melhor forma possível minha capacidade de transmitir informações sobre meu estado e meu histórico. Não me senti julgada, mas acolhida, o que foi muito importante pois eu estava em choque por não conseguir pensar e conversar normalmente. Algo se quebrou em mim e demoraria um bom tempo para se reestruturar.
Já era minha terceira crise de ansiedade nos últimos dois meses, uma delas já havia me levado ao hospital. Sempre sozinha. Também tive travamentos na coluna, com direito a 3 ressonâncias, 15 dias de fisioterapia e várias sessões de acupuntura. Fora as outras coisas, aquelas que a gente não gosta de contar para não incentivar ou assustar ninguém. Desde 2014, eu faço acompanhamento médico com diagnóstico de Transtorno Bipolar. No fundo, ninguém sabe bem o que é isso e os médicos tentam fazer cálculos meio matemáticos meio empíricos para associação de medicamentos a fim de melhorar os sintomas dos quadros maníaco-depressivos cheios de irritabilidade e comportamento impulsivo. Cada vez que precisei trocar de médico (a), foi um caos. Seria magicamente bom se a vida se mantivesse estável e assim nos ajudasse a manter tudo tranquilo, estável também. Mas não funciona assim, não é mesmo?
Primeiramente eu preciso admitir que vivo para o trabalho. E não, não tenho um mega salário, ou uma mega empresa. Trabalho em um banco e sou apenas mais uma engrenagem bem pequenina dentro do seu robusto maquinário. O problema é que eu me cobro demais, quero ofertar sempre o meu melhor, e passo por cima dos meus limites. E a máquina adora isso. A máquina, esse mecanismo que exige tudo de todos, com velocidade e volume de entregas, tudo para ontem, com pessoas disputando quem trabalhou mais em condições insalubres, noite à dentro, com viagens de trabalho exaustivas e entregas surpreendentes. O banco não é humano. Mas por ser formado por pessoas, a gente se confunde, esperando que essas pessoas tenham comportamentos que promovam o bem estar e o respeito ao ser humano. Mas geralmente o foco está nas entregas, a todo custo. Geralmente custa o horário de almoço, a leitura de um livro pós-expediente, a corrida pela manhã, antes do trabalho, pois com uma nova reunião urgente, não vai dar tempo de correr. Não vai dar tempo de viver - essa é a minha sensação diária.
É como se a vida passasse muito devagar e muito rápido ao mesmo tempo. Devagar porque você vai reparando o quanto está infeliz, o quanto precisa se organizar para investir em você mesmo, e à medida em que descobre isso quer fugir da rotina louca em que vive. Rápido porque você não consegue tempo para realizar a fuga. A vida precisa ser realizada, a minha pelo menos. Eu sou lembrada de inúmeras maneiras de ser uma profissional produtiva, ágil, a participar de reuniões e desenvolver projetos formidáveis. Mas ninguém me lembra a pensar no menu do café da manhã do dia seguinte, ou de reservar um tempo para meditar. Ninguém me lembra que eu gostava de fotografia na época da faculdade, ou que eu tinha o sonho de escrever um livro, quando eu era criança. Meus cachorros me chamam pra passear, para colocar água e ração, me trazem ao tempo presente. Mas a minha mente não quer realizar a realidade. Prefere esquecer meu corpo, meus desejos concretos e mergulhar no infinito virtual. E assim a vida passa, inteira, e eu não lembro o que eu queria ter feito dela.
Na minha vida, eu não sei bem o que quero pra mim. E no meu trabalho sou ensinada a querer crescer sempre mais, ser reconhecida, valorada pelas minhas entregas, disputar com os outros ao invés de simplesmente construir juntos os resultados de excelência. Meu chefe se aposentou 4 dias após o dia da camisa xadrez e eu não parava de me perguntar: "um dia eu vou chegar lá, nesse momento, olhar para trás e me sentir bem? Ou será que vou continuar sentindo que o banco sugou toda a minha energia e não sobrou mais nada de mim?" Eu tenho 16 anos de carreira só e me sinto mais exausta que ele, com 35 anos de dedicação. O que eu tenho de diferente?
Eu quero ser parte de sistemas que promovam um estilo de vida e de trabalho que se pautem no acolhimento, no afeto e no respeito ao outro, colocando as pessoas em primeiro lugar integralmente. Um ambiente em que a integridade moral exclua as fofocas maldosas da rotina e inclua a vulnerabilidade como uma pauta importante. Uma instituição em que eu possa ser Pessoa, não máquina. Onde eu possa ser Mulher, não engrenagem. Um lugar onde eu possa escolher a mim ao invés de escolher o impossível.
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Inspiração
A crônica foi inspirada em um momento difícil que passei, em que o estresse me levou a ter bloqueios mentais e a repensar toda a minha relação com o trabalho. Afastada por 45 dias, tive que reaprender a me comunicar, desenvolvendo novas prioridades e refletindo sobre a necessidade de mudança das minhas prioridades e do ambiente de trabalho.
Sobre a obra
A obra é uma reflexão sobre o que passei, que pode auxiliar outras pessoas a buscar novos caminhos de vida.
Sobre o autor
Olá, meu nome é Sabrina, sou jornalista e trabalho nas redes sociais da CAIXA. Vivo um momento de revisão de vida, tentando ponderar o que de fato me faz feliz dentro e fora do trabalho. Vejo as pessoas da CAIXA adoecendo, como eu, e gostaria de ajudar de alguma forma. E está nas mãos das pessoas agir diferente e virar o jogo, precisamos de apoio.
Autor(a): SABRINA PEREIRA ARAUJO (Sabrina Araújo)
APCEF/GO