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O RADINHO
O RADINHO
Beatriz Berghahn
O locutor anuncia que os prédios da rua em que Maria mora precisam ser urgentemente evacuados. As águas começaram a subir numa velocidade nunca imaginada. Ela reside no local há quase quarenta anos. Não quer sair de casa. Tem mantimentos para uma semana. Ouve pelo radinho que o prefeito não fez a manutenção das comportas e bombas. O rio Guaíba está subindo e alagando a região da orla. Chove sem tréguas. Prefeito filho da puta, diz em voz alta. Do que adiantou a vida inteira ela defender os pobres e protestar contra políticas que só favorecem os ricos? Um misto de incredulidade, raiva e medo a invadem. Aumenta o volume do rádio. O rio está tomando as ruas do seu bairro. Liga a televisão. Repórter ao vivo caminha dentro d’água na rua do seu prédio. O coração dispara, a pressão arterial vai a 20. Olha pela janela. A estreita visão que tem da Rua Luiz Afonso confirma que a água já está a mais de metro do chão.
Quer acender a luz para enxergar melhor qual roupa colocará na bolsa que primeiro surge à sua frente. Fica no escuro. Não há mais energia elétrica. Decide sair de chinelos de dedo mesmo. Eles tem um brilho chamativo demais para um momento tão trágico, mas é assim que vai encarar o horror que está vivendo. Começa a descer as escadas. Sempre segurando pela alça o radinho ligado, seu fiel companheiro que informa a situação da imensa tragédia que Porto Alegre e o Rio Grande do Sul estão vivendo. Mesmo convalescente de uma cirurgia no fêmur, segura-se no corrimão e desce. Ao chegar no térreo, todas as portas do prédio estão escancaradas. A água do rio forma ondas que batem no patamar do primeiro degrau da escada. Avança para a frente do pórtico e é avistada pelo condutor de um bote de resgate, que vem em sua direção. Maria alcança ao robusto voluntário sua bolsa com as poucas roupas e remédios. E também o radinho ligado.
Assustada, ao tentar entrar no bote, levanta ligeiramente a saia, para facilitar o movimento que necessita fazer para acomodar seu corpo no pequeno espaço. De cor cinza clara, a saia tem renda larga, bordada. Os brilhos são a simbologia inconsciente da presença materna em sua vida. Segurando o radinho, o barqueiro observa o aparelho. Um modelo antigo, igual ao que seu pai usava para atualizar-se das notícias na pequena cidade em que morava nos anos 1980.
Assustada, Maria grita:
- Não vou subir nessa coisa! Isso vai virar.
Paciente, o voluntário lhe diz:
- Então eu a carrego no colo. Não temos tempo a perder. As águas já subiram mais de três metros
O locutor do radinho, como coadjuvante da cena, confirma a informação.
Após o resgate, em terra seca, olha seu prédio de longe, aliviada. Mais calma, vai em busca de contato para alojamento na casa da irmã. Ao estar segura e acomodada no confortável abrigo que conseguiu, olha para seu fiel informante e pensa: Ainda bem que é de pilhas e não me deixou na mão. Olha para sua saia de renda: Ficou intacta. E alisa a renda transparente sobre as pernas, pensando em voz alta:
- Será que voltarei para casa?
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Inspiração
As tragédias das enchentes e inundações no Rio Grande do Sul e Porto Alegre
Sobre a obra
É relato fiel de episódio que vitimou gaúcha nas tragédias das enchentes e inundações do Rio Guaíba em Porto Alegre. Ano de 2024. Obrigada a sair de.sua casa pela invasão das águas a seu prédio.
Sobre o autor
Sou escritora com participação em livros da APCEF. Também lancei livros solo. As obras mais marcantes:
* Me Toque a Expressão da Emoção.
* A Cruz e.as Laranjas.
* O coração de uma Mãe.
* Mulheres Extraordinárias
Autor(a): BEATRIZ MARIA BERGHAHN (Beatriz Maria Berghahn)
APCEF/RS