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UM GAROTO NOTA DEZ
UM GAROTO NOTA DEZ
Era para ser mais uma daquelas tardes de embate entre o assédio das vitrines e o livre manifesto do desejo, porque os produtos estavam estrategicamente dispostos na minha linha visual.
O ambiente era um shopping de artigos têxteis, desses que vende a lojistas. Meu irmão era um deles. Estava ali para repor o estoque do Natal. Enquanto escolhia as tendências da moda, fiquei escalado como acompanhante de meu sobrinho, um cidadão mirim inquieto. Precisava distraí-lo, porque suas duas horas diárias com o celular já tinham sido esgotadas.
O Shopping era nanico, daqueles que em meia hora todas as lojas já tinham sido passadas em revista.
O garoto era azogado, travesso, deslumbrado com os produtos das vitrines que ele nem precisava.
Seus objetos de desejo eram muitos, e nem podia usar o velho truque de “na volta a gente compra”, porque o centro comercial era minúsculo. Um lugar como aquele, um shopping, não era propício para Corrida de Saco, Corrida do Ovo... Também nem tinha alguém de sua idade a quem pudesse oferecer um desafio. Nem podia ser incisivo na correção de seus estímulos, para não ferir o ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente.
Entramos numa livraria. Pensei em indicá-lo “Contículos e Textículos”, de “João Marcos”, mas esse tinha linguagem imprópria para idade e apresentava outros conteúdos ilícitos.
Pedi que lesse “As Mais Belas Histórias” de “Lúcia Casassanta”, ele devorou em um fôlego só. Além do mais, a mocinha “Posso Ajudar” passava em pequenos intervalos atrapalhando a leitura e convidando a iniciar a compra.
Mas, como entreter aquele guri?
Retirei do meu esquecimento pensamentos e regras que foram fundamentais em minha educação, e transformei em brincadeiras infantis. Os comandos funcionavam assim:
. Deveria permanecer sentado;
. Não exibir ruídos;
. Não podia levantar, correr, nem gritar;
.Havendo necessidade, teria que pedir licença e argumentar;
. Para cada vez que fosse cumprida a missão, um valor seria incrementado, numa espécie de poupança virtual;
. Para cada vez que ferisse nosso acordo de conduta, um valor igual seria subtraído.
No meio do certame, sua poupança ainda era inferior ao valor de qualquer querer. Mas como havia mais mercadorias que pessoas, muita oferta e pouca procura, tentei fazê-lo entender que quem tinha uma cédula daquela, tinha status de rei.
De repente, deslumbrada, uma senhora chamou-me a atenção como se quisesse participar. Não sabia como, afinal ela aparentava não ter a idade dele, não tinha a paciência minha e nem era período do Criança Esperança, onde tudo vira doação. Era uma educadora que estava no assento ao lado, já fazendo anotações.
- Onde você aprendeu essas técnicas?
- Eu...
- Você realçou a autonomia pessoal do menino, num processo de formação de sua identidade. Nem “Ziraldo”
teve tanto êxito com o “Menino Maluquinho”;
- Eu estou ...
- ?Quando ele se revolta como um dos “Sete Anões”, você, num golpe de “Mestre”, permite que ele desdobre as narrativas do personagem inventando sua própria história, desvendando alguns “ENIGMAS”, de “Denise Guilherme”;
- ... estou apenas ...
- Você pôs em prática “Paulo Freire”, fazendo a criança entender que “aprender com as diversidades, é o complemento da formação do sujeito como ser humano”; ?
- ... apenas querendo...
- Quando você diz que todos os produtos são objetos de desejo, e que ele terá necessidade de cada um deles, você passeia pelos 5 degraus da Pirâmide de “Maslow” fazendo a criança entender que “as necessidades são múltiplas, progressivas e hierarquizadas”;
- ... querendo descobrir...
- Ao dizê-lo que a cédula é mais importante que todos os produtos, você deixa ancho o economista “Delfim Neto” quando ele diz que “a parte mais sensível do homem é o bolso”;
- ... descobrir uma fórmula...
- Você valoriza os argumentos do adolescente, lembrando “Oscar Wilde”, quando diz que “a desobediência é a virtude original do homem”;
- ... uma fórmula para...
- O garoto pede licença para se movimentar, resgatando hábitos familiares em desuso, lembrando a composição “Como Nossos Pais”, de “Belchior”, imortalizada na voz de “Elis”;
- ...para entreter um garoto...
- Você incluiu perdas e conquistas em um mesmo desafio. E o principal:
? Você estabeleceu limites;
? Ensinou a dar significado à moeda;
? Mostrou teoria econômica para iniciante;
? Princípios de negociação;
? Obediência e hierarquia.
Um sinal de que a educação não está ligada ao excesso de recursos.
Naquele exato momento, os acompanhantes de nossa admiradora chegaram. Um pai, talvez, com propósitos semelhantes aos meus, acompanhado de um menino impaciente, parecendo recompor aquela família. Logo uma mão firme segurou seu jovem elétrico, enquanto a outra concluía as últimas anotações.
Aquela espectadora intelectual teve, o que ela chamou de Aula de Psicologia Infantil, esbarrada.
Nem deu tempo de explicar que a minha técnica educacional não tinha método algum. Não passava de artimanhas empíricas. Eu estava apenas querendo descobrir uma fórmula para entreter:
? Um garoto desassossegado de 09 anos;
? Portando uma cédula de 10;
? Doidinho por um sorvete de 11!
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Inspiração
A vivência ao lado de meu sobrinho, um garoto elétrico, cheios de desejos, e a necessidade de refrear seus impulsos, pondo em prática bons e velhos costumes.
Sobre a obra
A história de uma educadora, cercada de movimentos que nos levam a conclusões diversas sobre a educação infantil.
Sobre o autor
Autor de Flagrantes da Vida Alheia e Contículos & Textículos, livros de contos e crônicas com pitadas de humor onde as realidades risíveis são transformadas em causos e piadas. Também alguns cordéis como A Suíte Número 100 e o Catador de Histórias Perdidas.
Autor(a): JOAO BATISTA MARCOS CORREIA (JOÃO MARCOS)
APCEF/PB
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