Presunto e Queijo

Presunto e Queijo

Como posso ter a presunção de que ele sempre terá a resposta certa? Eu sei que boa parte da população ocidental está a costumada a isso: encarar uma grande fila desde o amanhecer, em uma coluna de famintos e sedentos por uma resposta, uma luz... e que somente aquele senhor, aquele ali ó, no comecinho da fila, de veste branca, cabelos timidamente grisalhos nas partes onde a calvície claramente avançada ainda não se esparramou, de rosto recém e imprecisamente escanhoado, onde reside um olhar que mescla a serenidade da sapiência de quem tem todas as respostas, com o fardo de dá-las diariamente à centenas que ali passam, perguntam e se vão satisfeitos, mesmo que por pouco tempo.
Logo atrás desta figura quase messiânica, na parede de azulejos brancos de rejunte claramente encardido, repousa a puída imagem da cruz marrom de um Jesus maltratado pelos romanos e descascado pela falta de manutenção, o que entrega que estamos em um ambiente de fé cristã. Na mesma parede, uns quatro ou cinco azulejos para a direita, há também uma pequena prateleira onde descansa uma tímida imagem de Nossa Senhora, que apenas reforça que, de fato, o nosso Guru é católico apostólico romano, e devoto.
Se estivéssemos em 1994, época em que prestei meu serviço eclesiástico obrigatório, também conhecido como catequese-imposto-pela-minha-avó, eu saberia dizer de bate-pronto qual das nossas senhoras era aquela. Mas hoje somos apenas dois conhecidos impostos pela rotina: sabe aquela pessoa que todo dia útil você encontra no mesmo horário no ponto de ônibus, secretamente unidos pelo fardo de serem do proletariado e que, por um acaso do capitalismo, moram na periferia e trabalham do outro lado da mesma cidade, e que ao te ver acena com a cabeça em um sinal que pode significar “opa, bão?”, e em resposta você repete rigorosamente o mesmo gesto, mas com o sentido de “bão, e você?”, e assim ficam sem trocar uma única sílaba até a chegada do coletivo? Então, esta é minha relação atual com a mãe de Cristo e seus familiares. No entanto, isso não me impede de estar aqui, mais uma vez, esperando minha vez de ser atendido pelo nosso Mensageiro.
E especialmente hoje, por baixo da vestimenta branca e relativamente transparente trajada pelo nosso Consagrado, tecida com um pano claramente novo e notadamente medíocre, percebe-se uma outra vestimenta mais escura, de listras alvinegras bruscamente interrompidas por um desarmonizado e exagerado quadrado verde na altura da barriga, e com o que parece ser uma estrela branca estrategicamente repousada na altura do coração do nosso Prócer. Sim, esta camisa quase subliminar do Botafogo campeão brasileiro de 1995, aliado aos trinta e muitos graus porcamente amenizados por um empoeirado VentiSilva parafusado na parede, indica que, além de um lugar temente à Cristo e à Sua mãe, estamos em Marechal Hermes, na Zona Norte do Rio de Janeiro, em uma manhã de janeiro.
Torcer para o Clube da Estrela Solitária talvez explique as suas evidentes olheiras de preocupação, além de seu costumeiro sorriso de alguém que ainda não perdeu toda esperança no seu time – e na vida. O que não é o botafoguense, senão um melancólico eterno otimista? Mesmo sendo vascaíno, compadeço e sou empático às dores alvinegras.
Hoje a fila está particularmente maior do que o comum. Tudo bem que aqui é uma referência para todo o bairro, e com a chegada do BRT alguns anos atrás ali do lado, gente do Realengo, de Padre Miguel e até da Baixada dá uma passada aqui logo cedo, antes de pegar o comboio da CLT. Mas poucas vezes vi a “fila” chegar até perto da porta. Fila é um modo de dizer: mais próximo do nosso Iluminado se amontoa a maior parte das pessoas. Consequentemente, à medida em que se aumenta a distância ao nosso Magnânimo, proporcionalmente vai se reduzindo a aglomeração de gente até chegar neste que lhe escreve, sozinho aqui no fundo como um mero figurante de novela. Suspeito que se tivesse uma foto desta cena vista de cima, tirada por um drone ou alguém disposto a se pendurar no ventilador de teto segurando um celular com uma câmera de qualidade altamente duvidosa, teria a perfeita imagem de um triângulo naturalmente formado pelas mais variadas castas suburbanas “érre-jotenses”. O que é a beleza perfeccionista da Sequência de Fibonacci perto da organização geométrica do Aglomerado de Cariocas?
Já te peço desculpas por me prolongar tanto em descrever o ambiente, e por vezes divagar em demasia, mas creio que por vir quase todos os dias aqui e aguardar tanta gente ser pacientemente atendida pelo nosso Reverendíssimo, eu passo um bom tempo observando de tudo.
E você pode estar imaginando o porquê de eu estar quase que diariamente neste local, sempre suando e esperando minha vez de poder trocar singelas palavras com nosso Abençoado. Mas já há algum tempo sinto um grande vazio pela manhã.
Não conheço sua rotina, meu inestimável leitor, e tampouco do quanto você sabe sobre a geografia e demografia carioca, mas eu trabalho no Recreio dos Bandeirantes, e nasci, cresci e ainda moro em Anchieta – que é quase Nilópolis. Para você que é de fora, Nilópolis é a terra de dois bichos: da Beija-Flor (a escola de samba) e o jogo. Como não sou zoólogo, nem sambista e muito menos contraventor (mas confesso que quando sonho com fogo, aposto cinquetinha no galo), me levanto às 05:00 da manhã pronto para percorrer mais de trinta quilômetros em quase três horas de ônibus, e é em Marechal Hermes que eu faço a primeira troca de condução.
Nessa baldeação, vem essa inquietude que toma conta de mim, como se eu fosse implodir se não saciasse essa vontade.
E do que é feita a vontade?
A língua portuguesa é mesmo uma danada, não é? Enquanto escrevia a frase acima, o corretor do Word me sugeriu agora a substituição de “a vontade” por “à vontade”. Um tracinho sem-vergonha em cima do “a” muda todo o sentido. É... nosso idioma é realmente dos mais complexo da humanidade, com uma infinidade de regras proporcionais a quantidade de exceções. Nessas horas eu invejo os que não sabem ou não se preocupam com tantas normas idiomáticas, e optam por escrever da forma que bem entendem. ‘Essa palavra se escreve com “c” ou com “s”? Ah, que se dane... vou colocar os dois e pronto’. É libertador e admirável, mas não consigo. Sobre escrever, o que me sobra é a vontade de se estar à vontade.
Mas a vontade pela qual me referia no meu trajeto no bonde do operariado não é sobre escrever. É algo além. É uma inquietação que me toma para saber, por fim, de que é feito.
“De que é feito o quê”, você deve se perguntar.
Então somos dois que não sabemos. Porque eu nunca sei o que me espera até chegar minha vez de falar com nosso Idolatrado.
Muitas das vezes, ali no balanço do busão durante as quase seis horas diárias de puro deleite no transporte público urbano, busco ter acesso a tudo o que a internet do meu celular me oferece gratuitamente – de artigos sobre comportamento humano aos sete dias de uso gratuito da versão premium do CapCut, onde edito os vídeos do Instagram da loja de material de construção onde trabalho como auxiliar de limpeza/estoquista/almoxarife/caixa/analista de redes sociais.
Mas enfim, nessas leituras aleatórias por vezes me deparo com algumas definições sobre do que o mundo é feito, de acordo com as mais variadas visões.
Por exemplo: de que é feito o humano?
Segundo a Física, de prótons, elétrons, nêutrons e quarks.
A Biologia básica nos resumiria a diversas estruturas celulares que formam os órgãos, músculos, sangue, ossos, pelos e gordura.
A Química postularia que cerca de 99% do humano é formado por oxigênio, carbono, hidrogênio, nitrogênio, cálcio e fósforo.
Em complemento à teoria química, o poeta nordestino e possivelmente biólogo autodidata, Wesley Oliveira da Silva, o Safadão, diria em uma famosa composição que aquele 1% restante é vagabundo.
Já Sócrates, no campo filosófico, enfatizava que o humano é feito de racionalidade, enquanto Platão afirmava que é de alma.
No livro “Os Irmãos Karamázov”, o russo Dostoievski nos fala que o homem é feito de um vazio do tamanho de Deus.
Isso é curioso, uma vez que as escrituras sagradas do livro de Gênesis revelam que o ser humano é feito “à imagem e semelhança de Deus”.
Mas se somos feitos à imagem e semelhança de Deus e, concomitantemente, temos um vazio do tamanho Dele, seria o Todo-Poderoso um grande vazio? E levando-se em conta que vazio é ausência, é possível cravar que Ele não existe?
Minha tia Zulmira, lá de Seropédica, por muitos anos frequentou a Igreja Deus é Amor.
Se Deus é amor, ao passo que ele também é vazio, seria o amor um sentimento inexistente?
Bom... não sei falar muito sobre amor. Sou filho único, e minha mãe morreu quando eu tinha três anos. Não cheguei a conhecer meu pai, mas certa vez a tia Zulmira, lá de Seropédica, me contou que minha mãe teve um breve relacionamento com um jogador de futebol do Vasco nos anos 80. Minha tia não soube me dizer quem era o craque, afinal, a irmã dela levou o nome do meu pai consigo, em segredo, para o caixão. Um bom tempo depois, olhando o álbum de figurinhas do Campeonato Brasileiro de 1989 que encontrei em um sebo em Jacarepaguá, me achei parecido Sorato, que fez o gol do nosso título naquele mesmo torneio. Nunca o procurei, mas passei a ter a certeza que sim, sou filho do Sorato. Não que eu o ame, longe disso – nunca o vi pessoalmente, e ele nem sabe da minha existência. Mas eu amo o Vascão - pelo menos eu acho que é amor.
Cresci na casa da minha avó, e sou bastante grato por ela ter feito o que podia para me criar – mas gratidão não é amor. Tanto eu quanto ela tínhamos que passar o dia conseguindo algum dinheiro, cada um em um canto da cidade, e o que eu tinha naquela casa era uma imensa solidão. Bem, se amor for mesmo um grande vazio, então sim, transbordava amor naquela residência.
E como dar ao outro um amor que nunca tive? Na minha vida, foram umas duas ou três namoradas – contando com Acácia, minha prima, filha da tia Zulmira, lá de Seropédica. Quando minha tia descobriu, nunca mais quis saber de mim. Saudades da Tia Zulmira, mas nem tanto de Seropédica.
Hoje, olhando para trás, entendo a frieza que recebi ao longo da infância é a que distribuo hoje em dia. Eu sei, preciso de terapia, mas como cuidar da mente se o corpo passa 6 horas por dia no frenético sacolejo do BRT carioca, de segunda à sábado?
Concordo contigo: isso tudo que falei não passa de filosofia de padaria, e não nos levará a lugar algum. Quer dizer, enquanto eu escrevia isso a fila andou, escutei a terna voz de um cansado sorriso dando-me “bom dia”, e finalmente pude ver mais de perto o nosso Glorificado. Abriu-se para mim também a vista daquilo que eu realmente queria saber do que era feito. Entre eu e o nosso Estimado, somente um balcão de vidro tão quente quanto Bangu em fevereiro, com detalhes em madeira cuidadosamente carcomida pelo tempo.
E ele, tão somente ele, poderia tirar a dúvida que me assola há pelo menos vinte minutos:
-Meu Digníssimo, aquele salgado ali... é de que?
-Qual?
-Aquele ali, ó.
-O enroladinho?
-Isso.
-O que está com presunto e queijo vazando pelas pontas?
-Esse mesmo!
-...
-...
-...
-...
-Presunto e queijo.
-Me vê um!
-Débito ou crédito?
-No VR, por favor.

Compartilhe essa obra

Inspiração

Nasci e cresci em São Paulo, uma cidade que nunca gostei, muito pelos problemas que uma grande cidade tem. As filas, sejam de carros ou pessoas, surgem a qualquer momento, sem prévio aviso. E o tedioso tempo gasto nesse périplo diário serve, por vezes, como momento de reflexão. Mesmo motivado por questões banais do cotidiano.

Sobre a obra

Hoje é comum se falar da banalização das coisas, como sexo, casamento, ciência, fé e turnês de despedida de bandas que só fizeram sucesso nos anos 90. Nesta crônica, busquei provocar o inverso: a supervalorização da banalidade. Refletir e filosofar a partir dos momentos mais banais da sua vida, como o trânsito ou a fila para comprar um salgado.

Sobre o autor

Desde criança gosto de contar histórias, sejam elas acontecimentos reais ou da minha cabeça, desenhando ou escrevendo. Embora eu ainda desenhe como uma criança, ao menos hoje consigo me aventurar nas crônicas e contos curtos. Nasci em São Paulo, mas já morei no Amazonas, Minas Gerais, Goiás e Brasília, sempre atrás de novas histórias.

Autor(a): PHILIP ANDREY DE LIMA E SILVA (Emídio da Dunica)

APCEF/GO


Essa obra já recebeu votos de 75 pessoas

Essa obra já recebeu 354 votos (com peso)