Um certo garoto chamado Apolinho

Apolo para o tio. Apolinho para a avó e para as pessoas mais próximas. Polinho para seu melhor-melhor amigo Ícaro. Diferente de Ícaro, mas nem tanto. Também tira notas boas, mas lava os pratos e arruma a casa, algo que na casa de Ícaro é “coisa de mulher”. Na casa de Apolinho, “coisa de mulher” é aquilo que não tem utilidade direta para o Tio. Fazer comida, por exemplo, é “coisa de mulher” se for para o filho do tio, mas para Apolinho, não. Lavar os pratos também. Mas tem certas coisas que, quando não servem para nada (entenda, não serve para o tio!), é coisa de mulher, e é vergonhoso para o Tio.

A sorte de Apolinho é sua avó, que apesar de se calar diante do filho, tio de Apolinho, passa a mão na cabeça de Apolinho e até guardar alguns segredos. Ela sabe, mas finge não saber, que tarde da noite, quando todos dormem, Apolinho vai, pé ante pé, até a máquina de costura e abre as sacolas feito um ratinho revirando as coisas dela. Ele toca na maciez ou aspereza dos tecidos, abre bem os olhos para enxergar todas as cores e formas das estampas, e depois veste as roupas encomendadas pelas moças. E ele se acha lindo, e é lindo mesmo, vestido de si próprio. As estampas, as rendas que a vovó faz, parecem todas feitas para ele. Mas nada é para ele, nada poderia ser. E por isso, só à noite, em segredo, ele conseguia ser (escondido).
...
Apolinho tinha uma imaginação forte, mas o que ele gostava mesmo era de colocar a mão na massa, quer dizer, no tecido. Imaginar o deixava triste, pois ele sabia que transformar imaginação em realidade era muito difícil. A menos que fosse costurando, aí, sim, ele conseguiria. Mas esse não era o caso. Com tanta imaginação e tanto a oferecer ao mundo e a todas as moças... mas não tinha utilidade para o tio.

“Isso é coisa de mulher, e você é homem, Apolo! Tome jeito!”, gritava o tio. Mas imaginação é coisa complicada de controlar... Se a gente não toma cuidado, ela nos leva para muito longe. A imaginação de Apolinho o fazia sofrer um pouco, mas também era o que o ajudava a suportar as “coisas de homem” que o tio tanto exigia.

Um dia, enquanto jogava gude com Ícaro, contou sobre um sonho em que tinha asas enormes, do tamanho de um caminhão. Mas não conseguia voar, porque as pessoas o olhavam com inveja, e isso fazia as asas ficarem muito pesadas.

— E por que você não fechou os olhos e voou? — perguntou Ícaro.

— Porque eu teria de abrir os olhos em algum momento, né, Ícaro? Eu ia cair.

— Mas como você sabe disso se nem tentou? Era um sonho, Polinho!

Apolinho encolheu os ombros, enquanto Ícaro se aproximou um pouco mais e colocou o braço sobre o ombro do amiguinho, dizendo:

— Não fica assim não, Polinho! Tá vendo aquele cavalo do meu vô? Um dia vou pegar ele e ir pra longe, pra onde ninguém possa me achar. Depois eu volto pra te buscar, Polinho. E ele vai ter essas asas bem grandonas igual teu sonho. Só que as asas vão ser do tamanho de avião. De avião, não. Do tamanho de um foguete. De um foguete, não. De uma espaçonave. De uma espaçonave, não. Do tamanho do que eu sinto por você. Do tamanho do nosso coração.

Apolinho achava bonito quando Ícaro começava a falar sem parar. Tinha vontade de dar um beijo no rosto do amigo. Olhava para os lados para ver se ninguém estava olhando. Ficava pensando o que Ícaro pensaria se ele fizesse isso. Sentia medo. Então falava qualquer coisa antes que a coragem chegasse até suas pernas e o levasse para beijar o rosto de Ícaro.

— E nossos amigos? Você não iria vim buscar?

— Lógico que sim. São nossos amigos, né, Polinho! Mas primeiro eu buscaria você.

Quando a brincadeira acabou, Apolinho teve o seu segundo momento favorito com Ícaro: o beijo da despedida, assim como o beijo do encontro. E todos poderiam ver isso, mesmo que estranhassem, era um pouco normal. Não tão normal como era para as meninas.

Foi um dia muito feliz saber que Ícaro iria primeiro buscá-lo. É como se o amigo gostasse mais dele. E se o dia foi tão feliz, a noite deveria ser tão feliz quanto. Com essa felicidade, ele preparou o mingau para a vó e a janta para o tio. Massageou as pernas dos dois até cochilarem e e irem para a cama. Fez tudo o que costumava fazer, como menino de ouro que era.
Tarde da noite, para coroar o dia mágico, Apolinho foi pé ante pé até a sala de costura da avó. No alto da estante, uma sacola gigante, repleta de tecidos brancos de vários tons e brilhos que pareciam cristais, chamava sua atenção. Era possível ver, presa à sacola, uma tiara de pérolas tão brilhantes quanto o brilho no fundo dos olhos dele.
Apolinho pegou uma vassoura, subiu numa cadeira e cutucou a sacola até ela cair. Revirando-a como uma formiguinha num pote de açúcar, pegou tudo o que pôde e começou a se arrumar. Era a roupa de uma noiva ainda por fazer, e sua imaginação fervilhava enquanto ele se transformava. Não era mais uma formiguinha; era uma lagartinha em um casulo de tons brancos e brilhantes, pronta para se transformar em uma borboleta a qualquer momento.
E lá fora, no jardim, muitas nobres joaninhas e abelhas esperavam ansiosas pelo desabrochar da borboleta. A lagartinha em transformação escutava os passarinhos dizendo para se apressar, cuidar do cabelo, ficar bonita, isso, aquilo, aquele, aquela... Bum!!! Antes mesmo do grande estrondo, uma luz forte fez os insetinhos assustados voarem.

Será que o sol caiu? E por que, em vez de pétalas, são estilhaços de vidro da janela da sala de costura da avó que se espalham por todos os lados? Enquanto se perguntava, a borboleta, que ainda nem havia desabrochado, sentia os pedaços de vidro cortarem sua pele, agora humana.

O tio apareceu na porta da sala de costura com uma espingarda ainda fumegando após o disparo. Ao acender a luz, o homem não conseguia entender o que via. Parecia a forma do sobrinho, mas brilhava como uma barata albina gigante. Como era “coisa de homem”, ele tinha o dever de exterminar a barata antes que ela tivesse filhotes gigantes. O tio continuava a escutar a mesma voz de quando disparou contra a janela. Era a sua imaginação, que diferente da do sobrinho, estava carregada de memórias dolorosas. Era a sua memória, eram seus traumas que ganhavam força e eco na lembrança dos gritos do seu falecido pai: “Seja homem, seja homem! Vai!”.

Apolinho ainda tateava o chão, puxando os panos para que o tio visse que era ele, Apolo, quem estava ali. O tio começou a gritar “não, não, não”, como querendo fugir de alguma memória. Ele pegou a espingarda e a virou ao contrário, tentando acertar a barata albina gigante com um golpe só. E acertou! A barata desistiu de levantar.

Desacordada por cima de pérolas uma barata humana. O tio olhava fixamente segurando soluços, tremendo as mãos, sem saber os limites do que existia dentro dele: até onde foi ódio, até onde foi raiva, e coragem, e estupidez. Lentamente, ele foi vendo as feições da barata e reconhecendo as feições humanas, tão humanas quanto as dele. Demorou para reconhecer o sobrinho de ouro desacordado com uma estampa líquida vermelha na testa. Era inconcebível para o tio aquilo, como ele saberia que o sobrinho faria algo... “Não era coisa de homem, não era coisa de homem, como eu saberia, se não era coisa de homem?”.

Apolinho, meio tonto, meio perdido, não sabia o que seria pior: o tio reconhecer, e castigar violentamente por isso ou não reconhecer e acabar de uma vez por todas com as chances de um dia ele viver para além da imaginação. Mas independente do que fosse acontecer, o mais difícil de entender era como aquele aperto que ele sentia no peito poderia doer tanto e mais que os pedacinhos de vidro que lhe cortaram a pele. “Por que ele fez isso? Eu preparei o jantar, eu massageie as pernas, eu nunca faltei o respeito... por que ele fez isso?”.

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Inspiração

A partir de um mergulho nas minhas experiências pessoais e nas vivências de pessoas próximas que, durante a infância e adolescência LGBTQIA+, enfrentaram violências físicas, simbólicas e psicológicas dentro de suas próprias famílias. É crucial expor essas realidades dolorosas que, em muitos casos, levam até mesmo ao suicídio infantil.

Sobre a obra

A obra inédita faz parte do meu primeiro livro infantojuvenil que devo lançar até novembro de 2024. Uma história de cinco crianças que sempre foram amorosas e "quase" perfeitas segundo família e sociedade.

Caso queira fazer a pré-reserva na obra e ajudar na publicação, fala comigo no Instagram @tandiesogo ou por e-mail tandiesogo@gmail.com

Sobre o autor

Com a vontade de atribuir sentido à vida que vivo, multipliquei-me artista para criar uma rede de apoio simbólica. Sou JohnaTAN DIEgo. Tandie é o meu nome escolhido, Pfefferman já foi meu sobrenome criado, mas hoje é Sogo, junção de sobrenomes. Então tal qual um quebra-cabeça, quebrei-me em pedaços e me refiz como um "kintsugi".

Insta @tandiesogo

Autor(a): JOHNATAN DIEGO DE SOUZA GOMES (Tandie Sogo)

APCEF/PE


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