Mas agora eu sou um arbusto de hortênsia

Vick é o apelido de Victória. E também é o cheiro da pomada que ela adora. Me disse que tem dessas coisas estranhas. É a criança mais estranha, e ainda assim, para ela, mais estranho eram os outros. Foi isso que nos aproximou de algum modo na escola quando ela me viu parada no tempo, vendo seu Zeza, quer dizer, dona Zeza ajudando o homem da faxina, que tinha acabado de recolher o lixo do pátio, quando os mesmos idiotas que chamaram Vick de “doidinha da tapioca azeda” passaram por ele correndo e derrubou tudo. Eu estava parada no tempo, olhando como as pessoas são estranhas, viajando. E aí, quando eu vi, ela também estava parada, mas olhando eu olhar aquilo.

Eu sorri para ela. Ela, no instante ficou, nervosa e depois veio caminhando de lado em minha direção, parecendo um tímido caranguejo, e aí ela balançava os bracinhos assim, que aí parecia um caranguejinho mesmo.

— Sabia que, quando eu era ainda bem pequena, descobri o poder do invisível num choque elétrico. Só porque você não vê, não quer dizer que as coisas não existam. Tem coisas que você não ouve, não toca e, no entanto, sente. Pra mim, é difícil o que é fácil pros outros, e fácil o que é difícil. Pra os outros é difícil ter duas mães, e minhas mães ficam até com medo que eu diga por aí que eu tenho duas mães e que elas se amam muito! Porque é difícil pros outros, mas para mim é muito fácil. Onde já se viu ser difícil acreditar que duas mamães se amam igual que nem uma mamãe e um papai? Difícil são esses meninos gritarem, derrubarem as coisas, correrem! Eu não consigo fazer tanta coisa ao mesmo tempo. Ou eu toco, ou eu falo, ou eu cheiro, ou eu sinto. Muitas vezes eu estou sentindo. Eu acho que, nessa parte, talvez eu entenda as pessoas. Geralmente se sente muito quando se está em silêncio. Eu faço tudo em silêncio. Só quando eu preciso de coragem é que eu falo, falo, falo, falo muito, como agora. Você também acha que eu sou doidinha da tapioca? Sabia que minhas mães estão pensando em mudar de cidade só por conta que eu disse para elas que os meninos me chamam de “doidinha da tapioca azeda”, “doidinha da tapioca queimada”, “doidinha da tapioca crua”... antes eu não ligava porque era só “doidinha da tapioca”. Mas agora eles estão inventando essas outras partes engraçadas. Eu acho engraçado. Mas depois eu acho chato. A gente estuda na mesma sala? Sabe o que eu trouxe pra lanchar? Começa com a letra T.
— Hummm... Tatu?
— Quem come tatu? A segunda letra é a letra A.
— Tamanduá?
—Quem come tamanduá? A terceira letra é a letra P.
— Tap, tap, tap – eu fingia não saber a resposta porque era muito bonito ver a alegria dela em me deixar intrigada com o misterioso lanche dela.
— Eu gostei de você! Porque eu sinto que você sabe que eu trouxe tapioca e, mesmo assim, quis brincar comigo. Sabia que tem um tempo que eu como tapioca escondida no banheiro?


Tudo porque ela ficava girando na ponta do pé enquanto comia tapioca com um pouco de manteiga, uma das suas comidas preferidas. Só que ela não girava na ponta do pé só por conta de tapioca. Se chovesse, ela girava porque achava lindo a chuva molhando as plantas. Se fizesse sol num céu sem nuvens, ela girava porque achava lindo o céu todo azulzinho. Se o céu estivesse muito cheio de nuvens, ela girava porque achava bonito o céu cheio de algodão-doce cinza e branco. A verdade é que ela girava por qualquer coisa. E por isso era a doidinha para os meninos, que viam que ela girava quando comia tapioca.

— Escuta, eu sei que você é assim. Eu também sou um pouco diferente lá em casa. Mas só lá em casa mesmo. Aqui eu tenho um pouco de medo. Mas como você consegue ser você?

— Não entendi bem sua pergunta. Eu sou eu.
— Desculpa.
— Não. Eu entendi sim. Só porque você é uma das mais inteligentes não significa que eu também não seja. Mas eu sinto, né? E não consigo usar bem a cabeça como você.
— Eu só queria saber como você consegue ser tão forte. Esses idiotas te chamam de doidinha disso, doidinha daquilo e, mesmo assim, você continua girando.
— Mesmo assim continuo sendo doidinha, você quer dizer. Não precisa ficar constrangida. Eu continuo mesmo, ué. Olha, está vendo esse cordão aqui?

Vick puxa um pouco um cordão que está no pescoço dela para fora da camisa. É um lindo cordão com girassóis que ela esconde tão logo eu vejo.

— Sabe o que é isso?
— Você é especial, né?
— Tão especial quanto você.
— Não é isso que eu quis dizer, eu quis dizer que...
— Eu tenho licença poética!

Disse que as mães dela e a diretora Zeza falaram isso. Que ela é uma pessoa que pode fazer o que quiser, desde que não machuque ou prejudique os outros. Que ela é uma pessoa boa, e tudo que faz não se explica, apenas se sente.

— Você quer também? Posso falar com minhas mães pra saber como elas conseguiram pra mim! Acho que não deve ser muito difícil. A diretora Zeza falou pra mim e pras minhas mães que só conseguiu a dela depois de muito tempo, quase quando que ela começou a ser diretora aqui. Acho que, se a gente não pedir cedo, pode ser que atrase muito.

Depois desse dia, vez ou outra, a Vick me procurava. Ela vinha como caranguejo quando quase ninguém estava comigo. Se alguém se aproximasse de mim, ela saía como caranguejo também.
Eu fiquei refletindo muito sobre licença poética, e me perguntava onde estavam as licenças das pessoas. E não foi muito difícil responder a mim mesma que as pessoas recolhiam as licenças umas das outras. Tudo normatizado, parametrizado, ajustado. Lá em casa minha mãe deixou a licença dela na floresta, no rio, perdido na nossa comunidade indígena. Ou talvez tenham lhe pedido e queimado na igreja.

— Por que você não fica perto de mim quando chegam outras pessoas?
— Eu sou forte como você disse. Eu giro mesmo. Mas... eu sinto também, lembra? E eu sinto que aqui tem muitas pessoas que querem tomar minha licença poética. Ou fazer com que eu sinta vergonha dela.
— Enquanto você estiver comigo, ninguém, ninguém vai fazer isso, tá? Um dia você vai conseguir proteger sua licença sozinha.
— E quando a sua chegar, você gira comigo quando fizer alguma coisa que você gosta muito?
Daiara falou ao pé do ouvido de Vick ,sussurrando:
— Lembra daquele dia que a gente se conheceu? Pois naquele dia eu já fui solicitar a minha. E quando ela chegar, eu quero que você conheça meu pé de ciriguela e que coma comigo. Você pode levar sua tapioca, e eu vou ter ciriguela. E a gente vai girar muito com nossa licença para ser feliz.
— Não é licença para ser feliz! É licença poética. Será que você pediu a certa mesmo?

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Inspiração

A partir de um mergulho nas minhas experiências pessoais e nas vivências de pessoas próximas que, durante a infância e adolescência LGBTQIA+, enfrentaram violências físicas, simbólicas e psicológicas dentro de suas próprias famílias. É crucial expor essas realidades dolorosas que, em muitos casos, levam até mesmo ao suicídio infantil.

Sobre a obra

A obra inédita faz parte do meu primeiro livro infantojuvenil que devo lançar até novembro de 2024. Uma história de cinco crianças que sempre foram amorosas e "quase" perfeitas segundo família e sociedade.

Caso queira fazer a pré-reserva na obra e ajudar na publicação, fala comigo no Instagram @tandiesogo ou por e-mail tandiesogo@gmail.com

Sobre o autor

Com a vontade de atribuir sentido à vida que vivo, multipliquei-me artista para criar uma rede de apoio simbólica. Sou JohnaTAN DIEgo. Tandie é o meu nome escolhido, Pfefferman já foi meu sobrenome criado, mas hoje é Sogo, junção de sobrenomes. Então tal qual um quebra-cabeça, quebrei-me em pedaços e me refiz como um "kintsugi".

Insta @tandiesogo

Autor(a): JOHNATAN DIEGO DE SOUZA GOMES (Tandie Sogo)

APCEF/PE


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