Sobrevivendo à Avenida Amarela

Sobrevivendo à Avenida Amarela

O que é não poder andar nas ruas da cidade durante o dia? Circular, caminhar, ver as pessoas, entrar na padaria, pedir um café, conversar. Mas para ela isso não era possível. Marcia, 35 anos, era uma mulher transexual, que desde que descobriu sua sexualidade deixou o cabelo crescer, passou a se maquiar usar salto alto, algo que lhe dava empoderamento e valorizava seu lindo corpo; desde essa época em que se descobriu como ser humano, passaram a lhe negar o direito básico de ir e vir.

Não lhe sobraram muitas opções. Não foi aceita dentro de casa, seus pais eram religiosos fervorosos e o dia em que ela tentou conversar e explicar que nunca se identificou com gênero masculino, que não tinha desejo por mulheres, e que o seu corpo não lhe agradava, e que ia passar por uma transformação, isso aos 17 anos. Desde então foi expulsa de casa e passou a viver de favores na casa de amigos, e teve que se prostituir para sobreviver.

Um dia Márcia saiu de casa para dar suas voltas, mas a noite não tinha sido muito boa. Conseguiu somente um cliente, no qual teve que fazer o atendimento dentro do veículo, pois a pessoa não queria gastar com um motel, ou drive in da cidade. Então, para economizar ela tirou o salto alto e vinha caminhando descalça ao longo da avenida quando um sujeito parou o carro e abordou oferendo carona. “_ei princesa, tudo bem?”.

O homem aparentava estar bem embriagado, junto com mais dois homens, um na parte de trás, e outro na parte da frente do carro. Ela respondeu em seguida “_tudo bem amor, e vocês?”. “_ótimo, a gente tá afim de se divertir, você quer se divertir com a gente? aí aproveitamos e te damos uma carona”. Márcia estava cansada, com fome e com frio, mas olhando o estado daqueles rapazes pressentiu que não seria uma boa aceitar o convite e negou elegantemente: “_não queridos, eu to afim de caminhar um pouco, já encerrei meu expediente”. Insistentemente o homem reiterou o convite chegando bem perto com o carro e apalpando a bunda dela. “_vamos, você vai gostar de nós três fazendo um bem bolado com você”.

Imediatamente o passageiro que estava menos embriagado gritou para o motorista: “_seu trocha, é um traveco.......Kkkkkk”. O homem ao volante ficou desconcertado e num ímpeto de raiva deu um soco nas costas de Márcia e disse: “_seu filha da puta, ta querendo me enganar, isso aqui é o que você merece por ficar de bobeira tirando com a nossa cara. Você vai se fuder comigo”.

Márcia sentiu uma grande dor com o golpe daquele homem, intensificado pelo frio da madrugada, mas continuou sua caminhada, não era a primeira vez que aquilo havia ocorrido, então procurou esquecer e focar no percurso de mais uns 7 quilômetros que a aguardava pela frente. Notou que quando o carro saiu o passageiro de trás pegou celular e parecia falar com alguém de forma séria.
Cerca de 25 minutos depois, ela continuava caminhando, mas um pouco mais devagar porque seus pés doíam muito quando entrava em contato com aquele asfalto surrado da Avenida Amarela. Era como ela chamava aquele local em que fazia seu ganha pão durante à noite.

Ela se recorda que durante o dia, quando tinha “passabilidade” e conseguia caminhar normalmente sem ser humilhada, ela achava aquele lugar lindo, pois durante boa parte do ano, mas principalmente na primavera, ela gostava de ver os ipês amarelos floridos enfeitando a paisagem.

E quando ia terminando a estação as flores começavam a banhar o chão, formando um lindo tapete amarelo. Aquela lembrança lhe fez sorrir e esquecer momentaneamente a dor da pancada nas costas, a fome e o cansaço.

No entanto, como que acordada de um sonho, pode ver as luzes de uma viatura policial se aproximando rapidamente e um policial gritando para ela: “_parado, parado seu pilantra, se mexer a gente atira”. Sem entender o que ocorria Márcia ficou imóvel, e apenas perguntou assustada: “_o que houve? Posso saber o que tá acontecendo?”. “_A luz alta da viatura a deixou sega, e pode apenas escutar o policial falar ferozmente: “_ você não sabe o que aconteceu seu pilantra? Encosta na parede que vamos te dar uma geral, recebemos uma chamada dizendo que você agrediu e assaltou um rapaz que estava pedindo informações”.

Nesse momento foi empurrada por um policial alto, que logo em seguida colocou a mão em sua bunda e depois deslizou para o bolso esquerdo e encontrou uma nota de R$ 50,00. Em seguida já falou alto: “_você tá encrencado viadinho, achamos a prova de seu crime aqui. Vai fazer uma visita na delegacia hoje”.

Logo em seguida sentiu uma pancada seca na barriga que lhe causou uma dor tão aguda que não pode ver mais nada. Os guardas a jogaram para dentro da viatura e cerca de 15 minutos depois ela acordou em uma sala, com um balde de água lançado em se roso e vários policiais na sua frente, rindo e apontando para ela, que não sabe como, estava sem roupas, com o nariz sangrando, e com uma dor enorme no estômago. “_Acorda traveco, levanta, você gosta de se exibir, agora vai, dá uma voltinha aí pra gente te ver. “.

Márcia sentia sua cabeça doer, e seus olhos só conseguiam enxergar um clarão de luz, não conseguia ver ou identificar ninguém. Só ouvia várias vozes, e gargalhadas. Pode perceber que estava em uma grande sala com no mínio 8, ou nove homens fardados. Se levantou com muito custo, e recebeu outro balde de água gelada no rosto. Escorregou a caiu no chão. Sentiu uma grande dor na cabeça, pois a queda foi tão brusca que não pode se proteger, então caiu de costas e bateu a nuca no chão. Quando colocou a mão na cabeça percebeu que estava sem cabelo. Havia sido raspada. Só conseguiu ouvir os homens rirem com mais força. Se levantou e um dos homens veio até ela e disse. “_isso é pra você não dar uma de espertinho e ficar se passando por mulher e ficar explorando pessoas de bem”. Vai embora, aliás vê se desaparece dessa cidade sua aberração. Você não pertence aqui.

Foi empurrada da sala, e enxotada daquele distrito policial de forma animalesca. Saiu nua, sem o único dinheiro que tinha ganhado na noite. Suas roupas haviam sido sujas de terra e jogadas na rua. Ela mal conseguia ficar em pé. Teve que pegar o que restou de suas vestes e se vestir. Aquele momento veio uma frase bíblica em sua mente, como que uma voz ecoando uma em sua cabeça: “_Os humilhados serão exaltados”.

Ela ficou comovida e lembrou que apesar de tudo que passou na vida nunca perdeu sua fé. Nunca deixou de acreditar em Deus, e era super fã de Jesus que na sua opinião, foi um grande exemplo de humildade, sabedoria, aceitação e não discriminação. Aquilo lhe deu força para vencer o grande percurso de 1 hora caminhando até a casa de sua amiga.

Chegou toda ensanguentada, com o nariz quebrado, sem os cabelos, e com um corte na nuca. Quando sua companheira a viu ela começou a chorar compulsivamente. Mas não caiam lágrimas, era um misto de dor e revolta. Não sabia o que fazer, se sentia literalmente sozinha, sem lugar no mundo. Desse dia em diante, 29 de janeiro de 1987, percebeu que o único caminho era tentar de alguma forma lutar para que outras companheiras não passassem pelo que ela passou.

Então, no outro dia de manhã, acordou cheia de dores e manchas de pancadas na barriga e nas costas. Mas quando olhou em se pé viu uma pequena flor de ipê amarela grudada na panturrilha. Deu um sorriso. De alguma forma ela sentiu que havia um grande caminho a percorrer, cheio de dores e sofrimento, mas resolveu não se prender aos machucados em seu corpo, mas sim na beleza daquela pequena e frágil flor que resistiu e ficou agarrada em sua pele, desde o momento em que foi brutalmente abordada e jogada na viatura policial na bela Avenida Amarela.

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Inspiração

A luta e combate à transfobia .

Sobre a obra

Utilizo linguagem coloquial e explícita buscando descrições vívidas do cotidiano sofito e humilhante de pessoas trans em situação de prostituição.

Sobre o autor

Eu amo contar histórias do cotidiano, revelando a beleza nas pessoas e cenas comuns que nos inspiram e dão mais cor à vida. Através da música, literatura e fotografia, transformo momentos simples em narrativas que emocionam e trazem novos significados ao dia a dia.

Autor(a): FABRICIO SILVA LIMA (Fabrício Lima)

APCEF/MS


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