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QUIMERAS E ESPERANÇAS NA CAPITAL
QUIMERAS E ESPERANÇAS NA CAPITAL
Francisco nasceu nos idos de 1960, num ano de seca brava no Ceará, tempo em que o sertão se faz mais quente e espinhento, como se a caatinga quisesse engolir cada um dos que a habitam. Porém, no fundo há um amor incondicional entre o homem e a natureza, dois apaixonados que não conseguem viver longe um do outro. Mesmo o emigrante, retirante da seca, guarda no peito a eterna saudade e o choroso desejo de voltar.
Sertão que maltrata, que faz passar sede, fome, desnuda as plantas, maltrata os animais, porém em época de boa chuva deixa todos orgulhosos de fazer parte daquele universo mágico!
E Frank, apelido de criança, cresceu vendo inverno e seca. A escola era longe, improvisada na sala da casa do soldado Ananias, mal dava para aprender a assinar o nome e a fazer contas. Fazia parte de uma família de cinco, três mulheres e dois homens, filhos de Seu Manoel e Dona Maria, afora três que não se criaram. Pela ordem: João, Francisco, Joana, Francisca e Maria José. As meninas desde cedo foram se dedicando a tarefas domésticas. Os filhos desde os sete, oito anos já ajudavam o pai no roçado e no serviço de olaria, onde trabalhavam no verão.
Joãozito era mais esperto, sonhador. Tão logo se tornou adolescente partiu para Brasília, onde era o novo oásis do Brasil naquela época. Emprego disponível na construção civil, esperança para esse novo candango cearense que ia levando a lembrança de uma infância difícil, pouco estudo e a vontade de vencer na vida.
No interior se passaram anos difíceis, o feijão colhido não enchia os vasilhames da sala. Um dia o padrinho de Francisco, Dr. Gaspar, que era do sertão, porém morava em Fortaleza, foi visitá-los e tomando conhecimento da situação, convidou aquele rapazola de vinte e pouco anos para ir com ele para a Capital.
Lá partia aquele garoto franzino, cheio de esperanças pensando em também mudar de vida:
- Bênção, pai, bênção, mãe! Vou para Fortaleza!
Foi morar com o padrinho. Era um senhor de fala mansa, gestos nervosos e agitados. Cabelos brancos que avançaram bastante em sua cabeça depois da viuvez. A casa era espaçosa, moravam Seu Gaspar e seus filhos, e tinham uma Mercantil, situada a alguns quarteirões do mar, na zona oeste.
O mar, aquele azul desembocando no céu, no qual um barco, por maior que seja, parece minúsculo. Tão misterioso quanto a caatinga, tem caprichos, segredos; recua e avança sobre a praia. Exige coragem de quem desliza sobre ele no afã de extrair peixes para o sustento. Como dizia um pescador:
- Cabra frouxo ali não entra, pois o mar não deixa! Tem que ser corajoso!
Seu Gaspar lhe pagava pouco. Mas quem trabalhou com a enxada não acha dificuldade em buscar peixe e outras mercadorias para vender. Mesmo porque a alegria maior era de visitar a família no interior, levando algum dinheiro, roupas usadas, presentes e participar daquela festa de abraços e carinho!
Com tudo isso, à noite ainda estudava, meio acordado, meio dormindo. Vontade de aprender e realizar seu sonho de crescer na vida!
Conheceu Maria, pouco mais de vinte anos, que morava próximo à mercantil. Sua mãe morrera de tuberculose quando tinha cinco anos e seu pai sumira no mundo. Criada por uma tia e pela avó, que apesar dos setenta e cinco anos ainda costurava para o sustento da família. A tia era empregada doméstica.
Maria fez Frank descobrir um motivo para não se arrepender de ter vindo. Um novo amor em sua vida. Passaram-se cinco anos na cidade grande, projeto de casar-se, dinheiro pouco, viagens periódicas ao interior. Um dia, Seu Gaspar se sentiu mal, foi levado ao hospital e não voltou. Infarte fulminante. Logo, filhos e parentes apareceram de toda parte para dividir a herança. Trataram rapidamente de afastar Francisco. Para eles, era uma possível ameaça aos projetos financeiros.
Sem ter onde morar e não querendo retornar ao interior deixando Maria, foi acolhido por um amigo da praia, Mestre de jangada, que dizia ser jangadeiro antes mesmo de Frank nascer. E aquela choupana de tijolos sem reboco, piso de cimento, cuja porta da cozinha se abria para a praia, de onde se sentia a maresia tornou-se sua nova casa. O almoço todo dia era peixe, divididos entre o pescador – quando não estava no mar - sua esposa, seus quatro filhos e Francisco. Usava a bicicleta do pescador para se encontrar com Maria, já planejando o casamento.
Após alguns dias só ajudando na venda de peixes na praia, resolveu também partir com o mestre na jangada “Sereia”. De início sentiu as pernas tremerem, vontade de desistir. Contudo, fechou os olhos, continuou empurrando a embarcação rumo ao mar e foi... Aquela praia começou a se tornar menor, enquanto o azul ia se multiplicando. Depois só havia céu e mar, dias e dias depois naquela embarcação pequena, uma lição de grande coragem daquele que ia se tornando mais um pescador. De noite, o silêncio do sopro do mar dava aos jangadeiros a sensação de estar rodeados de seres encantados, numa escuridão absoluta até o amanhecer.
Pouco tempo depois juntou um dinheiro e decidiu casar-se. Foi ao interior contar a história do falecimento do padrinho e pedir a bênção para o casamento:
- Seja bem-vinda à nossa família, filha. Deus abençoe a união de vocês!
Alugou uma casinha na Praia de Iracema. Pequena, três cômodos e banheiro. Porta e janela de tramela. Sua vida era na terra e no mar. Quando aquela jangada branca com uma lista azul da proa até a popa partia, fazia prece para São Pedro, enquanto Maria acendia velas e mais velas para o anjo da guarda do marido.
A chegada era uma felicidade, fartura. A embarcação não era sua, mas levava algum dinheiro e uns peixes para casa após dias e dias no mar naquela jangada aparentemente frágil, feita de madeira que dava todas suas forças e valentia para proteger seus tripulantes que com facilidade se afogariam indefesos.
Uma manhã, Seu Gonçalves, um comerciante amigo do finado Gaspar, o encontrou em seu ponto de venda. Francisco estava bem mais magro, queimado de sol. Ofereceu-lhe um emprego em sua empresa de pesca.
Conversou com Maria e aceitou o emprego. O trabalho no mar era bom, tinha muitos amigos, porém aquele emprego lhe daria mais estabilidade. E se não desse certo, voltaria a ser jangadeiro. Voltou a estudar, tentando terminar o ensino fundamental. Seu filho nasceu e foi registrado com o nome de Miguel, em homenagem ao Arcanjo. O sonho daquele pai era dar estudo ao filho, fazer dele um doutor:
_ - Maria, nosso filho vai ser nosso orgulho, vai ser doutor! Um cidadão decente e de posição!
Em casa, Maria lavava e engomava para fora. Foi manicure, tentou vender bijuterias, fazia faxinas, enfim tudo que estivesse ao seu alcance para ajudar no sustento da casa.
Anos se passaram, às vezes se encontravam com o Mestre Jangadeiro, que contava histórias e histórias do mar, relembrando os tempos de Francisco pescador.
Comprou uma pequena casa, só com telhas e tijolos, sem reboco e sem piso. Começou a reformar aos poucos.
Vendia férias, fazia horas extras, ajudava o Mestre João nas vendas na praia, quando estava de folga. Sua casa já tinha água encanada, luz, televisão de segunda mão, geladeira, comprada nos crediários das lojas.
Enquanto isso, seus irmãos no interior ainda estavam vivendo em casas de taipa trabalhando na lavoura. Porém seus sobrinhos estavam estudando.
Resolveu passar o Natal com a família no sertão. Levou presentes. Lugar que parecia distante do mundo, onde um grito parece não ter onde ecoar. Nuvens que, tímidas e esquálidas, teimam em aparecer diante daquele sol fogoso. De noite as lamparinas dão luz e brilho aos olhos de quem conversa na saleta. Do lado de fora, um céu estrelado e o luar, que ilumina os caminhos de quem anda a pé ou de bicicleta sem farol, desviando de buracos e espinhos, impossível a quem não é acostumado àquela rotina.
Seu irmão Joãozito estivera em Brasília, São Paulo e pouco tempo retornara. Gente forte que não desiste. Continuava em tempo de seca colhendo o que resta nos roçados ou parte para a cidade grande deixando mulher e filhos; para retornar depois feliz e apressado tão logo poupa algum dinheiro ou caem as primeiras chuvas espantando a seca.
Francisco saíra do interior levando a esperança de ficar rico. Não tinha mais ilusão. Sente um laço de afeto, uma corda sobre o peito que provoca um aperto mais e mais fino e doloroso à medida que faz planos para o futuro. Seu pai comenta:
- A situação aqui não está boa. Ano de seca vai se acabando, parece que outro ano de seca vem!
Sertão que parece ter filosofia e cultura próprias, esboçadas em previsões de tempo, nas cantorias de viola, nos ditados populares, remédios e na religiosidade.
Todos têm esperanças de que aquela terra que tanto amam não seja tão ingrata e o povo do sertão tenha melhores condições de vida. Pensam:
- Não vai existir lugar melhor do que este!
Dos anos 1970 aos anos 2020 houve progresso, evolução, caminho para o desenvolvimento. Seu filho Miguel estudou e hoje tem seu emprego, casa, uma vida digna.
Passaram-se cinquenta anos. Francisco faleceu. Praia de Iracema agora valorizada. O terreno da casa foi vendido por uma grande quantia. Anteriormente área de subúrbio, depois área nobre da cidade. Especulação imobiliária!
Porém nada muda a magia, o encanto do sertão e o amor e apego do sertanejo à sua terra é indescritível, uma paixão desmedida, impossível de ser descrito e explicado nessa crônica.
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Inspiração
A história do sertanejo em contraste com a seca, e como há necessidade de políticas públicas para tentar levar desenvolvimento, evitando movimentos migratórios, com geração de emprego e renda e diversificação da produção econômica na região.
Sobre a obra
Crônica que descreve a relação do sertanejo com a seca e a tentativa de melhorar de vida no decorrer dos anos. Como o Nordeste vem buscando o desenvolvimento, com repercussão social, política e econômica.
Sobre o autor
Sou empregado da CAIXA que escreve contos, crônicas e poesias buscando transcrever a realidade dentro do universo literário, concomitante a uma abordagem sociológica.
Autor(a): FLORIANO BENEVIDES DE MAGALHAES NETO (FLORIANO BENEVIDES)
APCEF/CE
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