Bartholomeu

Bartholomeu

Minha avó tinha um sapo, um sapo e um genro. O genro chegou aos poucos, como devem chegar os genros. Começam vindo para um café, depois para um almoço, um jantar com direito ao telejornal e novela das oito. Quando menos se espera, o genro já faz parte da casa e ali planta sua prole, o que garante sua permanência.

Já com o sapo foi diferente, ou não, pois não há padrão para sapos se tornarem moradores. Aliás, não existem sapos moradores em outro lugar que não seja o brejo, ou na falta desse, em uma poça d’água ou mesmo em um jardim. Mas com Bartholomeu foi diferente, a começar pelo nome. Ninguém se chama Bartholomeu, muito menos um sapo, mas minha avó lhe deu esse nome. Se era conhecida como Dodô, nome de uma extinta ave das Ilhas Maurício, que mal haveria em dar um nome de gente a um sapo?

Bartholomeu entrou, grande e enrugado, pela porta da cozinha que dava para o quintal. Não devia ter vínculo familiar ou mesmo lembranças de infância. Já era maduro, maduro, marrom e feio. Sapo verde e simpático, só em ilustração de contos infantis. Entrou como se fosse por distração, mas parecia estar agindo de forma premeditada e, sabe-se lá como, com razoável conhecimento da casa, não só da casa como também dos hábitos. Sabia que o cão não era de nada e que os gatos não estranham sapos. Gatos já são misteriosos o suficiente para estranharem um sapo. Não sendo incomodado pelos animais, se alojou debaixo da cristaleira da sala e passava o tempo assistindo televisão, que ficava ligada com ou sem espectadores, a não ser na hora do telejornal e da novela das oito, que o genro também assistia e, às vezes, também minha avó.

Não demorou para que fosse descoberto. Aqueles olhos saltados, que piscam de baixo para cima, logo chamaram a atenção do genro, provavelmente incomodado pela concorrência. Vai que minha avó resolvesse dar um basta, dizendo que a casa tinha gente demais e botasse todo mundo para fora – sapo, genro, filha e netos. As pessoas mais velhas não têm muita paciência. Já toleraram muita coisa e não querem passar seus últimos anos incomodadas, o que no caso da minha avó se tornaria um tormento ainda mais longo, pois ela só partiria muito tempo depois, aos 107 anos.

Se Bartholomeu conhecia o temperamento do cachorro e dos gatos, certamente sabia muito da minha avó, que é quem decidiria sobre seu destino. Sem demonstrar surpresa, Bartholomeu foi agraciado com o nome e com um pedaço de bolo. Sapo não come bolo, mas também não tem nome. Então, por que recusaria? Talvez tenha sido a primeira vez que Bartholomeu comeu bolo, ou melhor, a primeira vez que comeu algo diferente de um inseto. Comeu e pareceu gostar. Sapo acostuma com tudo. Dizem que a gente às vezes tem de engolir sapos, mas eles que engolem tudo.

Na casa havia crianças, e crianças fazem maldade com sapos, mas com Bartholomeu não podiam nem chegar perto. Minha avó não apenas acolheu, mas adotou o sapo como um animal de estimação. Seria exagero dizer que era como um filho, porque com filho ela nunca teve paciência.

A vida seguia, com Bartholomeu a cada dia mais senhor de si. Tinha suas regalias, mas não abusava. Ficava em seu canto, debaixo da cristaleira, próximo à cozinha e ao quintal. Era certo seu pedaço de bolo ou miolo de pão e um pires com água. Carne ele não gostava, talvez por não ter dentes. Não gostava de barulho, ficava agitado com gritos de criança ou com latidos do cachorro. Saia de perto e buscava um canto mais sossegado.

Quando as pessoas iam dormir e não viam o sapo, faziam uma vistoria para saber se não estava sob as cobertas de alguma cama. Minha avó não se preocupava com isso, por saber que com ela não faria uma coisa dessas ou, talvez, porque soubesse que ele trocava o dia pela noite. Não coaxava, como fazem os sapos, seja por rouquidão ou mesmo por preguiça. A cada dia, Bartholomeu parecia mais acomodado, com aquela falta de atitude de quem não precisa se esforçar para conseguir as coisas.

O genro, pelos cantos, resmungava por conta da diferença de tratamento. Para ele, minha avó não economizava olhares enviesados e indiretas, sem qualquer motivo para tal que não fosse por simples implicância. Gente velha sempre tem alguma coisa para reclamar. Como era muito religiosa, não tinha coragem de reclamar de Deus e descontava no genro, na filha e nos netos. Para se redimir, enchia Bartholomeu de gentilezas.

Uma noite, saindo para a missa, falou um monte de desaforos para todos, se despediu de Bartholomeu e nem a porta da casa fechou. O sapo, imprevidente que só ele, saiu debaixo da cristaleira ficou contemplando a raiva do genro. Sapo tem boca grande e parece que está sempre debochando. Foi o que bastou para que levasse um pontapé mirado para a porta aberta, fazendo um voo até a calçada. Assustado, virou a cabeça para trás, mesmo sem ter pescoço para girar, e só viu o par de olhos furiosos do genro, a confirmar que o chute havia sido certeiro.

Resignado, seguiu caminhando a esmo, sem se importar com a chuva fina que caia. Não lhe agradava deixar aquela vida boa, mas a violência inédita, que já se anunciava há tempos, talvez não lhe garantisse a continuidade de vida nenhuma. Aquilo havia sido mais do que uma advertência. Sapo é bicho que se acostuma com tudo, e desacostuma também. Minha avó, quando deu falta de Bartholomeu, preferiu imaginar que tivesse arrumado uma namorada e se mudado para algum lugar apropriado para constituir família. Sapo tem vergonha na cara e não mora na casa da sogra.


Compartilhe essa obra

Inspiração

A história de Bartholomeu é verdadeira. Talvez a única história de sapo verdadeira. Geralmente, os sapos surgem nas histórias infantis como bichos espertos, ou tentando ser espertos, como aquele que foi para a festa do céu dentro de um violão. Mas esta história eu presenciei e é uma das boas lembranças de minha avó.

Sobre a obra

Peguei uma história verdadeira e a contei com pitadas de ironia, sem mudar o contexto. Na verdade, a história crua já é por demais curiosa e não podia ficar somente comigo.

Sobre o autor

Falar sobre mim é mais fácil, mas falar sobre meu talento é assumir que tenho algum talento, e isso não me compete afirmar. Prefiro deixar a critério de quem lê. Escrevo porque vivo de escrever. Sou advogado e através das palavras busco ajudar as pessoas que me confiaram seus problemas.

Autor(a): HEITOR MENEGALE (Heitor Menegale)

APCEF/RJ


Essa obra já recebeu votos de 1 pessoas

Essa obra já recebeu 5 votos (com peso)