Entre o luto e a luta

Entre o luto e a luta

Se eu tivesse que me definir em uma única palavra seria FORÇA.
Passei por tantas coisas na minha vida que a FORÇA foi minha fiel aliada.
E ela acabou virando a minha melhor amiga nos dias ruins!

A vida continua

Aprendi essa lição durante momentos de grande dor. A nossa existência decorre muitas vezes em tranquilidade e cercada de momentos felizes em família e, também, na vida profissional. Parece que conseguimos a realização de metas e sonhos e devemos apenas manter aquela situação confortável e tranquila. Eis que, de repente, muito de repente, a situação muda bruscamente e nos deixa atordoados com acontecimentos imprevistos. Assim aconteceu comigo. No ano de 1985, planejei levar minha filha caçula, Kelma, à Disney como já havia proporcionado essa viagem aos dois filhos mais velhos em excursão do colégio. Como a caçula era a única menina, decidi acompanhá-la.
Ao se aproximar à data da viagem, o pai também resolveu participar da excursão. O mês de julho estava em andamento e o clima em Brasília estava bastante frio. Foi então que a minha filha apareceu com uma gripe forte e até febril. Eu a mediquei de acordo com a prática de outros episódios, pensando em levá-la ao médico caso não melhorasse. Os sintomas sumiram e era grande a ansiedade dela em realizar um sonho próprio da idade. Bem próximo à viagem, a empresa MS Turismo, de Brasília, marcou uma reunião com os participantes da compra do pacote de viagem, da Monark Turismo de São Paulo, para oferecer o seguro viagem. Meu marido foi sozinho com Kelma a essa reunião e chegou dizendo: “esse povo quer tirar dinheiro da gente de qualquer jeito. Quem vai morrer em uma excursão de férias de 15 dias?” Não podia imaginar o que nos esperava.
O dia da viagem chegou e seguimos felizes para a excursão programada. Encontramos um grupo legal e animado para a convivência dos próximos dias. Minha filha estava à vontade se comunicando com a criançada de sua idade, meu marido fazendo amizades e brincadeiras com vários participantes e eu feliz por estar protagonizando aqueles momentos. Chegamos ao destino e participamos dos primeiros passeios. Minha filha, comunicativa e vaidosa logo se encontrou, sentindo-se à vontade no grupo e participando das brincadeiras. Na primeira noite, ao chegarmos do jantar, Kelma desceu com os novos amigos para a piscina, aproveitando para amenizar o forte calor e meu marido e eu nos recolhemos e até dormimos antes de ela subir. Ao amanhecer o dia, fomos despertados pelo aviso de irmos ao café para seguir ao parque da Disney. Ela foi a primeira a ficar pronta e a descer para o café e ficar à espera do ônibus que ia levar o grupo para o passeio. Coloquei US$ 10 dólares na sua bolsa de cintura para uso, caso se afastasse de nós durante o passeio. Então chegamos ao nosso destino e Kelma sempre estava com a turma dela e em passeios desencontrados dos nossos, o que gerava reclamações do pai. Em um determinado momento, a encontramos descendo de uma montanha russa e, ao tocar em seu corpo, percebi que sua temperatura estava muito alterada e logo pensei que fosse a garganta, devido ao consumo de muito geladinho no parque e banho de piscina até tarde da noite no dia anterior. Falei com o médico, pediatra de Brasília, que acompanhou a excursão e foi prescrito AAS. Mais tarde, o pai a viu entrando no brinquedo xícara maluca e ficou feliz. Em seguida, ela estava febril de novo e puxando pela perna ao caminhar. Como ela estava muito abatida, a levamos para um ambiente em que as pessoas que sentem algum mal-estar ficam descansando. Ela ficou confortável deitada com ar-condicionado e o pai e eu nos revezando para fazer companhia e, ao mesmo tempo, permitir que um de nós dois acompanhasse os acontecimentos do grupo.
Levei copinho de leite e biscoitos para ela, que praticamente não se alimentou de nada. Na saída não conseguia mais andar e teve de usar cadeira de rodas e depois as costas do pai. No ferry boat, deitou-se no colo de uma vizinha de quarto. Ao chegar ao hotel, dei um banho morno nela e coloquei a roupa de dormir para esperar o médico. Ele veio e falou que ela estava com insolação e prescreveu mais um AAS com a recomendação para repetir em caso de febre. Meu marido não ficou muito convencido e disse que, se ela não melhorasse, iria procurar atendimento médico. Nesse ínterim, ela teve muita cólica e melhorou com medicação em gotas que usava em Brasília e depois o rosto estava coberto de pintinhas vermelhas. Estava com ela deitada no meu colo quando percebi que seu olhar estava fixado no vazio. Fiquei assustada e falei para o meu marido ir chamar o médico, pois ela estava morrendo. Ao vê-la, o pediatra disse que ela estava com alergia, mas ela já estava se indo mesmo. Ele tentou reanimá-la, mas não conseguiu. Saímos do quarto e chegou uma ambulância.
Os médicos americanos constataram, de imediato, que a causa morte era a meningite tipo B. A gripe que teve antes de viajar foi bacteriana e a bactéria alojou-se na meninge. Com a brusca alteração de temperatura do frio de Brasília para o calor de Orlando, a bactéria se desenvolveu rapidamente. Nossa família que ficou em Brasília foi medicada a distância e tanto nós como os participantes da excursão, que tiveram contato com a minha filha, receberam a medicação adequada. O mundo desabou aos meus pés e meu marido ficou em estado de choque, sem nenhuma atitude, deixando todas as providências por minha conta. Eu queria que tudo parasse em respeito à minha dor, mas isso não aconteceu. O sol continuou a iluminar o dia e a lua a derramar seu brilho à noite. As flores se abriam e as crianças sorriam. Tudo estava absolutamente normal ao meu redor e a dor da perda da minha filha amada fazendo sangrar o meu coração.
E agora? Como receber essa grande perda? Como curvar-se diante do plano de Deus? É preciso uma fé inabalável e consciência ao dizer “Senhor, seja feita a Tua vontade”. Isso não é fácil, pois é preciso digerir o acontecimento sem guardar revolta e nem questionar o Senhor a respeito do recebimento de uma cruz tão pesada sobre os ombros. O casal dono da Monark Turismo nos telefonou de Miami, sensibilizados com a ocorrência e enviou um filho até nós, em Orlando, dizendo que a empresa ia assumir todas as nossas despesas a partir daquele momento. Realmente, o embalsamamento do corpo, caixão, passagens até São Paulo e Brasília e o acompanhamento de alguém para ir resolvendo todas as questões foi uma verdadeira benção do céu.
Dizem que Ele não nos dá uma cruz mais pesada do que a nossa capacidade de carregar. As manifestações de pesar e conforto que recebi de colegas e de amigos de todo o Brasil me ajudaram muito a caminhar depois do ocorrido. O Frei Lambert, responsável pela paróquia Nossa Senhora do Carmo, que frequentávamos, foi nos esperar ao pé da escada do avião e nos transmitiu em um abraço e todo o apoio que precisávamos naquele momento. Em casa, nos aguardavam os colegas espíritas Flávio Giussiani e Sérgio Faria, que ajudaram muito o meu marido, que estava em uma rede desolado e sem coragem de nada.
Recebi mensagens, cartões, telegramas e orações de todo o Brasil, tanto de diretores, gerentes gerais, gerentes de agências, dos NORGs e de outros grupos de colegas, além dos familiares, amigos e colegas que demonstraram grande tristeza e queriam me amparar de alguma forma naquele momento. A cartinha que mais me comoveu foi do vizinho e colega da Caixa, Alceu Luciano Barbosa, cuja filha Edelzinha era a maior amiga da Kelma e estava inconsolável. A comadre e amiga Filomena estava tão abalada que foi confundida na missa, por mães de colegas do colégio que acharam que ela fosse a mãe da Kelma, tal o estado de desespero que ela demonstrava. Um funcionário do DEAGE, departamento que chefiei, Leonardo (Léo) me entregou um poema que fez para minha filha e me emocionou fortemente.
Ao entrar no avião que nos traria de São Paulo para Brasília, encontrei minha colega e amiga Lais Milan Dania, que veio me abraçar pessoalmente e meu amigo e colega João Francisco Stiake, que passou a noite todinha no velório da minha filha e retornou de ônibus no outro dia cedo para trabalhar. Foram gestos que me tocaram profundamente e senti as mãos de Deus me amparando todo o tempo.
A volta a Brasília em outro voo charter com grupo diferente do nosso foi bastante dolorosa. As crianças felizes com seus bonecos de pelúcia e os pais satisfeitos com o sucesso do passeio nos atravessavam de dor e vontade de despertar desse pesadelo doloroso. As irmãs de meu marido e a madrinha de batismo dela vieram de Fortaleza e, junto com meu irmão Crisanto, e cunhada Amélia, nos ajudaram muito a viver os primeiros dias da perda. A minha filha faleceu no dia do aniversário da minha cunhada e foi difícil transmitir a ocorrência ao meu irmão, na ocasião de um dia festivo.
Com o passar dos dias, a vida foi voltando ao normal e na casa sem as visitas ficou mais difícil de vencer a tristeza e saudade que nos abatia.
Precisei desmontar o quarto que tinha preparado para ela, que até as cortinas eram combinadas com a colcha. Comecei a mexer também nas roupas e demais pertences dela o que me doía muito a cada vez que dava início a essa tarefa.
Entretanto, Deus nos uniu mais ainda naquele momento tão difícil e fomos enfrentando com muita força e coragem a ausência da filha querida que voltou dos EUA em uma embalagem pesada sem chance de abrir para olhar seu rostinho pela última vez.
Nessa oportunidade, tomei conhecimento da existência das Aldeias Infantis SOS localizada na Asa Norte. Fiz uma visita, gostei da forma de administração criando a figura de mães substitutas em residências separadas e com limite de crianças e seleção de idades. Conheci o programa de agendar em cada mês um final de semana para retirar uma criança, escolhida previamente, para ficar sob os cuidados da família agendada no programa.
Estive lá com minha amiga e comadre, Filomena. Assim, escolhemos cada uma de nós uma menina para atuar como madrinha. A que escolhi era uma menina da idade de Kelma, chamada Valdirene, e ela passou a conviver conosco um final de semana em cada mês.
Descobrimos que ela ainda não havia feito a primeira comunhão e providenciamos o recebimento do sacramento e uma festinha para os amigos (bolo e refrigerantes).
Procurei complementar as suas necessidades de produtos básicos e, também, doei roupas da Kelma para ela usar. Isso era uma forma também de me sentir útil e dedicada a alguém que precisava de atenção e carinho.
Acompanhamos essa garota até a festa de formatura quando contribuí com vestido e sapatos para a festa e meu filho mais velho dançou a valsa com ela.
No seu casamento, fomos os padrinhos e sentimos o prazer e a sensação da missão cumprida.
Tudo que aqui relatei tem um objetivo principal que é transmitir a todos que lerem esse conto a internalização de que as perdas acontecem das mais variadas formas e, mesmo nas situações imprevistas e, por mais doloridas que sejam, não podemos esquecer que A VIDA CONTINUA e o plano de Deus não deve ser contestado. É estabelecido um tempo para cada um na caminhada pela terra.
E começar a pensar e praticar: TRISTEZA NÃO! SAUDADE SIM!
Em meio a toda essa tristeza, consegui enxergar que a vida continua e o luto não é um estado permanente, mas de rápida passagem para ceder lugar à saudade, que fica para sempre...
Não deixemos nosso coração permanecer em luto por muito tempo.
A VIDA CONTINUA.

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Inspiração

Entre o luto e a luta é um conto que surgiu de um desabafo e pelos atropelos que a vida nos dá, mas o que fazemos diante da vida? Quais condutas devemos tomar? E assim surgiu, um lugar de fala e de emoções. Um lugar de saudade, de sonhos, pois tínhamos o sonho de fazer uma viagem a Disney, mas o percurso mudou e aprendi que a vida continua.

Sobre a obra

Este conto narra a morte da minha filha Kelma durante uma viagem a Disney. Ele é narrado com os fatos, pois quem diria que a viagem dos sonhos poderia ser um pesadelo em minha família? Este conto fala sobre resiliência, sobre vida, sobre acolhimento, compartilhando o carinho que tive da empresa de turismo e da Caixa. Um tempo de luto e luta.

Sobre o autor

Nasceu em Fortaleza (1939). Casada com Raimundo Valber de Araújo (falecido). Mãe da Kelma (falecida), Denis, Ítalo e Luana.
Graduada em Letras Neolatinas e Administração Pública pela Universidade Estadual do Ceará. Atualmente é presidente da AEA-DF, gestão de 2022/2025 e autora do livro O impossível é possível: determinação, fé e superação.

Autor(a): LEOPOLDINA MARIA COLARES DE ARAUJO (Leopoldina Colares)

APCEF/DF