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Os Lanceiros Negros
Os Lanceiros Negros
Paulo Roberto dos Santos Caetano
No novembro na República Riograndense, durante a Revolta Farroupilha, os dias têm ares de verão. Na vespertina tem uma brisa rasteira, fresca. À noite essa brisa se transforma no Minuano, um vento frio, cortante, que atravessa o pampa e a madrugada. O que era verão se torna inverno. A primavera, assim como os púberes que trazem as características de duas estações. Próximo onde o arroio de Porongos faz a curva, está o acampamento dos Lanceiros Negros. Uma divisão de infantaria composta predominantemente por escravizados que se aliaram aos revoltosos em troca da alforria. Acampados e desarmados, os combatentes aguardam as novas ordens de seus superiores. Acendem fogueiras e reúnem-se em torno do fogo para, além de aquecer o corpo, contar as vitórias, esquecer a crueldade nas fazendas de charque, saudar a esperança pela libertação e quem sabe, o resgate da dignidade. No entanto, naquela madrugada do dia quatorze de novembro de mil oitocentos e quarenta e quatro, o acampamento é covardemente atacado por tropas imperiais, tendo o vento Minuano como testemunha de um massacre.
A revolta Farroupilha foi um movimento liderado por estancieiros do sul contra as políticas econômicas do Império. As elites revoltosas da época desejavam que o Império estabelecesse melhores condições para o comércio do charque, o principal produto da província do Rio Grande.
Sob o regime escravocrata a produção de charque era atividade sacrificante para os escravizados. Para além dos grilhões, dos castigos e humilhações, a rotina de trabalho nas charqueadas era cruel e dolorosa. Os trabalhadores escravos viviam num cotidiano de assassinatos de animais, com feridas causadas pelos pesos dos grilhões e castigos que não se curavam devido ao contato com o sal utilizado para conservar a carne, e que muitas vezes acabavam em mutilações.
Muitos escravizados aderiram ao movimento farroupilha para escapar daquelas condições de crueldade. A grande maioria pertencia a fazendas de estancieiros imperialistas. Fugiram de seus senhores com a promessa de alforria empenhada no fio de bigode pelos farroupilhas ao término dos combates. Entre os regimentos de escravizados, o mais popular era o chamado de Lanceiros Negros. Os lanceiros eram um regimento de infantaria e cavalaria, composto de aproximadamente cem escravizados. Tiveram enorme destaque nos combates pela forma aguerrida de luta e na destreza com as armas. Eram homens guerreiros que lutavam pelo sonho de serem libertos do regime funesto da escravidão; lutavam pela dignidade de serem humanos. No entanto, o compromisso de libertação firmado pelos farroupilhas não foi cumprido como o esperado. Os combatentes afro-brasileiros, ao final da guerra, foram assassinados no episódio conhecido como Massacre de Porongos.
No final de 1844, os rebeldes farroupilhas e as tropas do império avançavam nas negociações para o desarmamento das tropas e para pôr fim aos combates. Entretanto, alguns fatos ainda incomodavam por demais os imperialistas : o contingente de escravizados que aderiram as tropas rebeldes , conhecidos como Lanceiros Negros. As tratativas firmadas por Duque de Caxias, do lado imperial e David Canabarro, do lado rebelde dão conta de que a sorte dos Lanceiros Negros não seria a libertação, como havia sido prometido, mas a morte.
Depois de tantas histórias de bravuras e esperanças , a fogueira que pendia acesa e triunfante se apagou. As labaredas e fagulhas outrora flamejantes, renderam-se à frieza do Minuano. Implacável, na sua corrida pelos campos do sem-fim. Os guerreiros, cansados e desarmados de ódio, adormeceram. Há muito isso não acontecia. Em sonhos viam-se donos de sua própria vontade, curando suas próprias feridas, amando quem lhes amava, servindo a quem lhes queria bem e reconhecidos pela bravura. A madrugada avança, o Minuano cansado sussurra cantigas. A quietude toma conta do cerro de Porongos. Até que gritos de guerra e morte rompem a noite taciturna.
O ataque covarde a Porongos foi ordenado por Duque de Caxias, patrono do Exército Brasileiro, em carta ao coronel Francisco Pedro de Abreu. Em documento, ele afirma que não há com o que se preocupar pois os rebeldes estariam desarmados. Caxias ainda alerta para que sangue brasileiro fosse poupado “o quanto puder, particularmente de gente branca da província ou índio, pois bem sabe esta pobre gente pode ser útil no futuro”. A ordem de Duque de Caxias, está registrada em carta guardada no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul.
O documento descortina o “acordo secreto” entre Caxias e David Canabarro e revela como a sociedade brasileira tratava seus escravizados. Diz muito sobre as vertentes do racismo e a discriminação nos dias de hoje. Muitos pesquisadores tentam esconder essa face cruel do escravismo brasileiro. Afirmam que o abolicionismo fazia parte do bojo dos ideais farroupilhas, no entanto não há menções claras para tanto na constituição Farroupilha. Por outro lado justifica-se o temor de que este regimento armado se voltasse contra o Império, a exemplo do que acontecera no Haiti, porém , não era bem esta a ideia que estava no horizonte dos escravizados.
A manhã se desenha no horizonte do Cerro de Porongos. O sol, ao surgir, cintila gotas de orvalho nas teias de aranha. Parecem gotículas de prata que embrulham os segredos do mundo. A luz forte levanta-se no horizonte e revela corpos sem vidas, sonhos dilacerados, esperanças perdidas. São dezenas de corpos, um amalgama de panos e sangue. Todos pretos, todos mortos. O vento Minuano caminha pela planície do Pampa, circula pelo cerro assoviando uma canção triste de lamento, com promessas de nunca esquecer o que se passou.
O dia quatorze de novembro é uma data para ser lembrada. É uma data para resgatar a história dos afro-gaúchos. Uma maneira de indenizar a bravura e coragem daqueles guerreiros anônimos que lutaram ao lado dos farroupilhas. Dia para lembrar que ainda hoje os grilhões ainda existem invisíveis e estão sobre nossos pés. Na forma de discriminação, de olhares tortos, na desconfiança. Está nas portas fechadas, em oportunidades negadas, na ideia de que tudo o que uma pessoa preta possa fazer é insuficiente. Que a garra dos Lanceiros Negros seja um exemplo para nossas lutas do dia a dia, e que esta traição feita nos escritórios não aconteça nunca.
A história dos Lanceiros Negros nos ensina que a luta por liberdade e justiça é um processo contínuo. Embora o massacre de Porongos tenha sido um ato covarde, o legado de bravura e resistência desses guerreiros continua a inspirar gerações. A busca por igualdade exige que cada um de nós se comprometa com o combate ao racismo, se alie as pautas antirracistas, lute contra a discriminação e abomine todas as formas de opressão.
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Inspiração
O que me inspira é honrar a memória dos combatentes negros mortos massacre de Porongo em 14 de novembro de 1844. Este ano completa 180 anos do massacre
Sobre a obra
Esta é uma obra escrita em prosa, que busca narrar de forma poética e informativa o que foi, o que representa e as consequências do massacre de Porongos na na Revolta Farroupilha.
Sobre o autor
Sou ator, dramaturgo e pesquisador independente. Tenho alguns textos publicados em coletâneas. Participo do Coletivo de Escritores Negros. Busco alicerçar meus textos em pesquisas e inserir uma narrativa poética com a finalidade de impactar o leitor
Autor(a): PAULO ROBERTO DOS SANTOS CAETANO (Paulo Caetano)
APCEF/RS