PORQUE TINHA QUE SER OURO PRETO

PORQUE TINHA QUE SER OURO PRETO.


O tempo, as viagens e as notícias se transformam, de repente, num ajuntamento de percepções que só a memória desse alumbramento nos permite cerzir a história num inconsútil manto de reflexões.
Subindo a Rua Direita, em Ouro Preto, em direção ao Bar e Restaurante Escadabaixo, onde se bebem cervejas e chopes da Cervejaria Ouropretana, em especial os chopes IPA Maracujá ou o Golden Lager, todos artesanais e de sabores incontornáveis, sinto os ares barrocos e arcádicos soprando em minha direção. Os anjos barrocos de Aleijadinho parecem trazer-me de volta o pastoralismo de Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga, um dos Inconfidentes, como Basílio da Gama, com o seu Uraguai e outros não menos importantes.
Ali o tempo parou para que eu pudesse valorizar a liberdade e, muito mais, quem por ela deu sua vida para que pudéssemos exercer seu domínio pleno. É como quase ver Felipe dos Santos, cuja luta ficou eternizada no poema Dorme, Meu Menino, Dorme de Cecília Meirelles; sentir com esgar de ódio a traição de Silvério, que redundou no martírio de Tiradentes.
Ouro Preto transcende nossa vã imaginação e nos faz transportar o pensamento ao Recife de Bandeira, na sua Evocação ao Recife, onde afirma seu regionalismo cortante. Ali se respirava o verdadeiro patriotismo, não esse encomendado e embalado em papel celofane, vendido nos meios de comunicação com cores da bandeira norte-americana. Macunaíma surge diante dos nossos olhos como a desafiar falsos mitos e falsas ideologias, desafiando a ditadura das religiões, que vendem a fé, num fundamentalismo absurdo que rouba o senso crítico dos fiéis capturados através de promessas absolutamente irrealizáveis.
Refestelado numa cadeira de estilo colonial, sorvendo um delicioso Golden Lager, ouço notícias de assassinatos de pretos pela polícia do Rio de Janeiro. O apresentador tece, sob a máscara fria de indiferença, os números alarmantes da violência no Rio de Janeiro, onde se escuta que a cada cem pessoas assassinadas pela Polícia, ou Milicias (não se sabe onde uma termina e outra começa) sessenta e cinco são negras. Uma estatística deveras estarrecedora. Reflexões são muitas, inversamente proporcionais às soluções. Ah! A escravidão.
De imediato, traço um arco com o bárbaro assassinato de George Floyd nos Estados Unidos, esganado até o último suspiro ante uma plateia que parecia aplaudir e pedir bis. Ah! A escravidão, ou a prova inconteste de que o ódio não tem fronteiras, principalmente quando o assunto é o preconceito e a crença de supremacia branca sobre qualquer outra etnia.
A tarde dá seus sinais de esmaecimento e retomo à Praça Tiradentes já rumando pela Rua do Ouvidor, onde ali perto do adro da Igreja de São Francisco, visito a Feirinha de Pedra Sabão e fico maravilhado com a vasta exposição de obras artesanais cunhadas a partir da pedra sabão, tão característica da região.
As memórias não me saem da cabeça. Sinto sangue derramado de negros chicoteados nos pelourinhos daquele Brasil colonial e escravagista. Também o sangue dos que lutaram pela sua libertação, além dos grilhões que nos prendiam a Portugal. Da Serra Leoa voa o canto dos albatrozes em busca da mesma liberdade que o Condor dos Andes.
À falta de mares, singro teus ares rumo aos “verdes mares bravios de minha terra”, levando comigo a chama da redenção que outrora fez de Redenção a primeira cidade a reconhecer a liberdade dos escravos. Em ti, oh! linda Ouro Preto, repousam as vestes dos panteões da liberdade, hoje tão atacada por mentes doentias. A história de Ouro Preto deveria servir de símbolo da luta pela dignidade humana e conspirada a partir da Poesia e da Cultura como sói acontecer em lugares onde bafejam as ondas do respeito, da empatia, como um grito que rasga fronteiras do ódio, tornando-nos irmãos, sejamos brancos, vermelhos, amarelos ou pretos.
Tinha que ser Ouro Preto o meu cadinho de esperança.

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Inspiração

No reemcontro com Ouro Preto em 2023.

Sobre a obra

É uma obra memorial a partir de andanças pelas ladeiras de Ouro Preto, babejado pelos ares inconfidentes.

Sobre o autor

Poeta, letrista, compositor e esritor. Aposentado

Autor(a): CICERO BRAZ DE ALMEIDA (BRAZ DE ALMEIDA)

APCEF/CE


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