Irreverente

Pedro sempre foi um amigão da família! Era um rapaz vivaz, de boa fala e brincalhão, sabe? Nos conhecemos há muitos anos, quando ele ainda era adolescente, ali perto de seus vinte anos, até menos.
Mas o fato é que nossa amizade está aí, viva por décadas e não há quem possa negar! Tenho por ele o carinho que teria pelos filhos que não vieram com os anos. E ele sempre escuta meus conselhos!
Durante a faculdade, eu o socorri algumas vezes, de enrascadas das quais ele dificilmente escaparia sem mim... a turma das drogas, sabe? Mas eu estava lá. Um ombro amigo, um conselho razoável e dizendo, em tom paternal:
“Veja, Pedrinho! Você não quer acabar como eu, sozinho, não é?”
Ele tomou jeito naquela festa. Saiu dali, ligou para o pai, pediu ajuda. Era o que importava.
Voltei a vê-lo anos depois, já formado, concursado e desenvolvendo uma carreira promissora... Mas acabou se enrolando com um gestor abusivo e achava que poderia ser mais um elo na corrente.
Nem lembro como foi mesmo que descobri, mas sabe, né? Tenho meus contatos, as paredes têm ouvidos... e se eu te contasse, Ah, você sabe o clichê!
“Pedro, galinha que anda com pato, morre afogada! Não se suje com essas coisas. Você pode ter uma vida de sucessos pela frente...”
Desta vez ele não me escutou. Se afundou em problemas, depois em dívidas e por fim, em vícios.
Foi ficando cada vez mais difícil encontrá-lo, pôr-lhe juízo entre as orelhas, fazer meu papel de padrinho, entende?
Ele tentou me afastar de todas as formas, ignorando que tudo que eu almejava era o seu bem, que ele se tornasse um bom homem, um cara responsável e confiável. Mas o álcool era uma barreira.
Vê-lo daquele jeito me matava, me destruía. Drenava todo o meu ser. Então busquei ajuda, aqui e ali. Tentava influenciar o garoto, afastar as más companhias... Cheguei até a ameaçar um traficante. Funcionou, por um tempo.
Mas ele seguiu me evitando. Preferia ser um moleque irresponsável, mesmo já tendo quarenta anos nas costas! Queria ser tratado como um pobre coitado de um garotinho, mesmo tendo a idade que eu tinha quando virei seu protetor.
Tudo isto me feria, me magoava profundamente. Mas meu amor por ele... Ah, eu já disse, né? Ele era o filho que eu nunca tive! E poxa! Eu estive mais presente na vida dele que seu pai! Acompanhei cada passo, lutei para evitar cada erro e alertei sobre cada furada.
Mas até eu tenho meus limites.
Veja bem! Não sou nenhum santo.
Não tenho poderes angelicais.
Não faço milagres.
O máximo que eu poderia fazer, era mostrar a porta e deixa-lo em paz depois que ele a cruzasse.
Não vou mentir que eu tenha saudades! Tenho sim! Poxa, ele era sorriso puro! Como eu poderia esquecer o garoto?
Sua irreverência, sua leveza, a forma como fazia de tudo uma festa! Era encantador! É claro que me apeguei a ele, afinal, sem ele, eu não estaria aqui.
*
— Boa noite. Meu nome é Pedro e eu não me lembro a última vez que estive sóbrio por mais de dois dias.
— Boa noite, Pedro.
Ele estava sentado ainda, olhando o chão enquanto outros homens e mulheres não apenas ouviam, mas acolhiam seu relato. Eram rostos nos quais ele se reconhecia, eram dores irmãs. Era a primeira vez que ele não se sentia sozinho desde aquele dia.
— Eu tinha dezenove anos e já se foram quase trinta depois disso. Nós fomos a uma festa, eu e alguns amigos, sabe?
Nem todos os olhos estavam levantados, mas ele percebia que toda a atenção estava nele, uma atenção sem julgamentos. Remexeu os pés no sapato caro, rodou o copo d’água mais algumas vezes nas mãos e tentou controlar o tremor do joelho.
— Eu já tentei isso daqui outras vezes, não quero mentir. Já tentei de tudo, tudo mesmo! É que... por muitos anos, eu tentei só esquecer, ignorar meu passado, minha responsabilidade, sem me atinar para quem sofreu por minha causa. Tentativas, né?
Um senhor o olhava diretamente. Parecia ter alguns anos a mais que ele, alguns quilômetros a mais.
— Não vou começar a dizer que perdi... He he! Eu não perdi. O emprego, continua lá. Minhas duas esposas, meu filho? Continuam lá. Eu não perdi. Isto seria injusto com cada um deles. Eu os abandonei. Deixei cada um deles na mão, esperando por mim, por uma atitude que eu nunca fui capaz de tomar, desde os meus dezenove anos.
— Foi seu primeiro trago, Pedro?
— Não! Isso veio bem antes. Meu primeiro porre foi ilegal, minha primeira ressaca ainda foi na casa dos meus pais. Sempre tem um irreverente na família, né? Um amigo boa pinta, que “resolve as paradas”, e tal. Eu admirava esses caras, queria ser como eles, fui um deles em muitas situações.
Mais olhares o fixavam, enquanto seus olhos miravam o copo de plástico cheio de água, que ele insistia em rodar nos dedos. Mexeu os pés inquietos e respirou fundo, em um meio-soluço-meio-suspiro.
Três cadeiras para o seu lado, uma senhora cortou seu silêncio, depois de quase um minuto.
— Eh... Pedro, A palavra que você quer é mesmo irreverente?
— Não. Eu seria injusto com esta palavra. Irreverente é fazer piada em velório. É falar que o policial ficou um gato na farda, é pedir o telefone para a juíza de custódia. Eu bem que poderia ter feito qualquer dessas coisas e não estar aqui hoje, né? Acho que a palavra que eu busco há tantos anos, a palavra que não me deixa dormir, é outra.
— Você quer compartilhar conosco? — Perguntou o senhor, que parecia ser o mais velho ali.
— Eh, o que tenho a perder, não é? Eu já cruzei a porta mesmo! Dizem que este é o passo mais difícil.
— Sim, reconhecer nossos problemas. Sair do estado de negação, entender que de uma maneira ou de outra, estamos feridos.
— Então, vamos lá, puxar o esparadrapo de uma vez, com força e sem piedade!
Ele se levantou, ainda olhando para o copo.
— Meu nome é Pedro. Eu fui irresponsável quando tinha dezenove anos, dirigi embriagado e matei meu melhor amigo. Desde então, sou assombrado dia e noite por ele.
*
Através do fundo do copo d'água, ouço Pedro pela última vez. Vejo-o levantando, respirando fundo, enquanto me olha diretamente pela primeira vez em anos.
Uma energia percorre meu ser, não uma eletricidade, ou uma luz, mas algo ainda mais transcendental. Algo cuja sensação eu desconhecia nas duas vidas que tive, como amigo e como tutor de Pedro:
Paz.

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Inspiração

Me causa estranheza notícias de homens (barbados, adultos e até poderosos) delinquentes, ou mesmo criminosos sendo tratados com leniência.

Mesmo horror me causa meninas de 12 anos ou menos, sendo chamadas a uma responsabilidade que não lhes é justa.

Quis trazer isto à nossa realidade, com uma boa camada de fantasismo.

Sobre a obra

Gosto de narradores participativos.
Gosto de inícios abruptos, onde espiamos por uma janela uma história que já estava acontecendo.
Escrevi essa história assim, numa forma que gostaria de ler. Para ser apreciada lentamente, como... Como tudo que é bom precisa ser apreciado: um chocolate, uma boa amizade, a juventude e a honestidade.

Sobre o autor

"Sou um senhor de quarenta anos!"
Eu dizia isso e minha filha me mandava parar. Eu tinha 37 e ela, 17.
"Quando o senhor tiver 40, eu terei vinte! Pare com isso, me assusta!"
Cheguei, passei e além da cor dos cabelos, pouco mudou para mim! Tenho sonhos a perseguir e passado a compensar. Como todo adulto responsável.
A escrita é um dos sonhos!

Autor(a): PAULO ROQUE GOULART VALENTE (Roque Valente)

APCEF/SP


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