Viajantes

Viajantes
Apesar da distância aparente ser mínima, as duas viajantes estavam a mundos de distância.
Mikaella seguia protegida em uma viagem que ela sequer notava que acontecia. Ingeria seus nutrientes balanceados, próprios para o seu crescimento físico e mental, desenvolvidos com uma fórmula complexa e extremamente custosa, enquanto outras pessoas – mais treinadas, mais capazes e sempre dedicadas a ela - cuidavam de todas as particularidades da viagem.
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Michele por sua vez, estava espremida entre quase uma centena de outros viajantes, em uma máquina que não tinha a menor condição de conforto para nenhum deles. Sua consciência de mundo, no entanto, era mais firmada em termos de sobrevivência. Seu estado de dependência total, só permitia que soubesse o que era o sofrimento momentâneo. A fome? O desconforto? As dores? Sim, elas vinham com frequência naquele veículo. Cruzava o espaço já havia uma boa fração de sua vida e não sabia o que o futuro (um conceito ainda por se desenvolver em sua mente) lhe traria.
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Diante de Mikaella, um painel brilhou em padrões ofuscantes, ocupando metade de seu campo visual, mostrando belezas de um mundo que um dia ela dominaria, em códigos preparados para que ela conhecesse antecipadamente seu habitat, para que construísse, crescesse e se firmasse como Senhora de tudo aquilo. Aprenderia a linguística, dominaria os conceitos abstratos e a permanência das estruturas de poder. Construiria um império onde só havia um deserto, como cada uma daquelas aulas pareciam lhe ensinar. O monitor falava agora de espécies maravilhosas, que ela jamais veria: peixes, tubarões baleias... Seres do fundo de um mar distante eram apresentados por um senhor alegre e de movimentos duros, mas era um mundo que em breve seria seu. Aquele simulacro, como todos os outros, sempre lhe dizia isso. Um mundo para ela viver e desfrutar.
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Michele começava a chorar por seu sofrimento. Sua vida se alternava entre a dor, a fome, o sono e o desconforto, mas ela sentia tudo isso ao mesmo tempo. Um empuxo gravitacional causou um solavanco em seu veículo, a vibração sendo mais um incômodo, enquanto o ronco do motor que lutava contra a gravidade e o cheiro dos outros passageiros não a deixavam sequer pensar que havia um mundo do outro lado de todo aquele metal e vidro. Ela jamais vira nada do lado de fora. Para ela, não havia lado de fora. Seu mundo era limitado por sua pele, por suas sensações e por sua fome. A mistura de amidos simples e baratos com água de qualidade incerta que vinham lhe servindo há algumas semanas apenas a mantinha viva, sem os nutrientes que nem sabia lhe faltarem. Outra onda de solavancos e seu traje ficou mal posicionado, deixando vazar os odores de seus próprios dejetos, mas ela não conseguiria diminuir este desconforto. Só precisava sobreviver!
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Mikaella mal sabia a ironia de sua instrução! Estava acomodada em um mecanismo que a protegia em caso de qualquer problema, dentro de um veículo construído com os melhores materiais disponíveis para o seu bem-estar! Couro, blindagem, combustíveis, compostos e estruturas, tudo pensado em seu conforto e segurança. Ela sequer era consciente dos engenhos que a mantinham firme, protegida, segura. Décadas de evolução tecnológica. Seu assento era de tal forma projetado que, mesmo se aquele veículo fosse atingido por algo e fosse terrivelmente danificado, mesmo se atravessasse uma área de turbulência ou os próprios elementos do universo, ela seria poupada, podendo ser salva a tempo por uma equipe bem treinada. Sua posição e suas condições eram regularmente monitoradas. O veículo também a defendia de energias perigosas: o calor abrasante, ou o frio arrasador. O ar que ela respirava era continuamente filtrado, monitorado, higienizado, umedecido e aromatizado. Uma nave acolhedora em um universo inóspito. A ironia estava em que, para construírem veículos como aquele, extinguiram-se espécies sem conta, destruíram continentes, arrasaram montanhas e mares, como aquele ilustrado em seu monitor.
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Michele não tinha tempo para ironia. As condições insalubres, da falta de vedação adequada ao excesso de exposição às radiações nocivas, a falta de acompanhamento médico e de imunizações, sua baixa nutrição e os corpos espremidos naquela máquina, a fizeram contrair nos últimos minutos mais um patógeno contra o qual lutaria com as parcas armas à sua disposição, enquanto implorava com toda a veemência, que os responsáveis lhe conferissem melhores condições de conforto e segurança. Não seria sua última luta, como não foi a primeira. Mas perderia uma batalha em breve. Outro patógeno a mataria. Ela não herdaria um mundo. Não desbravaria, não conquistaria. Morreria sem sequer ter consciência do tal mundo, sem ter consciência de si e dos outros.
Ambas as naves chegaram ao destino. Ambas as viajantes foram levadas aos transportadores locais, acessaram o mesmo habitat e ali permaneceram, enquanto as formalidades de sua chegada eram preenchidas por outras pessoas.
*
— Qual é o nome dela?
— Mikaella Setúbal.
— Idade?
— Nove meses.
— Cartão de vacina?
— Eu tenho cinco escritórios no prédio. Ela vai ficar no berçário enquanto eu acesso o spa. Ninguém pode me obrigar a mostrar documento a você e nem a injetar essas porcarias de vacinas na minha bonequinha.
— Mas...
— Ou eu ligo para o Gerente Leonel.
— Tudo bem, senhora.
Vitoriosa ela saiu, ignorando as outras pessoas no ambiente, como herdeira de um planeta que ela não amava.
Em seguida vinha Michele e sua mãe.
— Oi, Cláudia! A creche estava fechada de novo?
— Sim e eu tenho duas faxinas no prédio, será que você...
— Você deixou a bolsa dela pronta?
— Sim, tem duas mamadeiras, algumas fraldas e a chupeta.
— E o cartão de vacina?
— Eh... Eu... Esqueci.
— Você sabe que...
— É que o posto do nosso bairro não tem vacinas para ela, então estou atrasada. Mas eu te juro que é só por isso! Prometeram um novo lote para semana que vem.
— Tudo bem.
*
Mikaella estava incubando sarampo.
Michele foi contaminada.
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Duas semanas depois, um universo “terrivelmente indiferente” ceifava duas vidas. Elas poderiam ter conquistado as estrelas juntas, mas foram postas a disputar um pálido ponto azul.

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Inspiração

Vacinação universal é um pacto social.
Enquanto negacionistas profanam este pacto, embasados em interesses econômicos e nada científicos, terrores extintos estão ressurgindo.
Quando um discurso tem potencial para causar mortes - infantis, principalmente - não há por que permiti-lo.
A segurança coletiva supera a "liberdade individual".

Sobre a obra

Bill Gates falou que investiu em filtros para regiões carentes, pois lá existe um mercado futuro para tecnologia, mas pode também ser a fonte do próximo salto científico.
Seria lastimável perdermos o próximo Fleming por causa da malária.
Foi assim que este conto nasceu! Pensei nas duas como cooperantes na criação de uma tecnologia que... não virá.

Sobre o autor

Sou escritor de Ficção Científica pelo Selo SAIFERS, onde conheci mundos possíveis, para melhor ou pior... muito pior!
Pintar futuros é como sinalizar uma estrada. Então, se meus temores puderem te ajudar nos próximos quilômetros:

SERRA À FRENTE. DESÇA ENGATADO E VERIFIQUE OS FREIOS!

Autor(a): PAULO ROQUE GOULART VALENTE (Roque Valente)

APCEF/SP


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