Memórias de Infância

Sabe como é, a gente trabalha dia após dia nessa rotina massacrante e o tempo vai passando cada vez mais rápido. Horas se tornam dias e depois logo viram meses. Vinte anos
passaram desde aquela promessa feita às margens do Rio Negro em frente ao Mercado, antes de ir embora da minha terra.
Meu nome é Amaro, nasci em Manaus e hoje moro em São Paulo. Saí de minha cidade logo cedo e aprendi a trabalhar desde muito jovem e nunca parei pra pensar nas coisas que me
faziam falta. Uma dessas coisas, foi a experiência que tive quando criança em minha terra natal. As lembranças que tenho se misturam ao passado e a história da cidade e depois de
tanto tempo, pude chegar à conclusão que nunca me senti tão em sintonia com uma cidade do que quando andava pelas ruas e vielas de Manaus.
Eu morava no centro da cidade, ali bem ao lado do Paço Municipal lugar que na época e até hoje é cercado de prédios históricos e de ruas de paralelepípedos. Via sempre a passagem dos marinheiros em carros militares que iam em direção à base naval, que ficava no fim da rua de minha casa.
Vivia de maneira simples e sem muito luxo, numa casa construída no começo do século XX. Era uma casa antiga, porém bem espaçosa e com janelas e portas grandes com a típica arquitetura neoclássica que podemos ver por todo o Centro Histórico.
Dona Soraya, era uma mulher batalhadora e que mesmo viúva de meu pai desde os meus cinco anos de idade, criou-me sem nunca deixar faltar comida e bons ensinamentos. Ela nasceu no interior do Amazonas em uma comunidade ribeirinha próxima da capital e sabia fazer os mais variados pratos com peixe e quitutes regionais de dar água na boca. Nas datas comemorativas já me preparava para sentir todos os cheiros que invadiam a casa pela cozinha.
Hoje, fazem 6 anos que ela deixou esse mundo.
Aos domingos pela manhã, fazendo chuva ou sol, a Dona Soraya, minha mãe, me levava para a Igreja da Matriz, assistíamos à missa e, saindo de lá, passeávamos pelo porto e
já sentia que chegava a hora mais aguardada do dia: a nossa tradicional ida ao Mercado Municipal Adolpho Lisboa para pegar os ingredientes para nosso almoço de domingo, olhar o
rio, conversar com as pessoas e assistir o vai e vem das embarcações.
— Acorda Amaro, vai já se assear! É quase hora da missa!
— Já acordei mãe, estou me arrumando! — respondi prontamente e assustado. Ela não gostava de me chamar duas vezes.
— Depois da missa vamos dar aquela voltinha lá no Mercado. Quero cozinhar algo especial hoje pra gente. Camarão no Tucupi.
— Ebaaa! Mãe pega a florzinha também. — chamava a flor do jambú de florzinha, tinha o hábito comer só a flor do jambú. Achava sensacional o efeito que causava na boca, aquela
dormência suave tradicional do jambú. Achava os domingos sensacionais, era o dia que entrava em contato com minha espiritualidade e abria meu corpo para receber novos cheiros, sabores, sensações e experiências. Mamãe comprava sempre seus hortifrutis com Seu Agnaldo, um vendedor franzino e educado. Ele ficava bem em frente ao Mercado Municipal Adolpho Lisboa. De longe já se podia ver as cores vivas e o contraste do vermelho e laranja do tomate e da cenoura e do verde das hortaliças que sempre estavam frescas. Eu, por outro lado, não saía debaixo das asas de minha mãe e tudo que via saia perguntando.

— Mãe, qual a diferença dessa pimenta verde e essa vermelha? — falava enquanto já ía
pegando as pimentas e colocando bem pertinho pra enxergar melhor.
— Menino! Isso é pimenta malagueta! Não pega nisso que você vai se queimar. Pega essa
daqui — colocando uma pimenta verde no lugar da vermelha — vai brincar.
Adorava pegar, cheirar e provar tudo que tinha no mercado. Era o lugar ideal para uma
criança conhecer e experimentar coisas novas. Gostava quando outras crianças também
estavam no local e aos domingos podia brincar com a Júlia, filha da Dona Zélia, uma feirante
de ervas e plantas medicinais que ficava no Pavilhão das Tartarugas, mais próximo do Rio
Negro. Dona Zélia veio do Estado do Pará e aprendeu seu ofício com sua mãe. Ela vendia
seus produtos com muita dedicação e responsabilidade, explicava os usos e finalidades e, na
época, era praticamente nossa médica e farmacêutica. Vendia boldo para a má digestão, carqueja, para o diabetes, erva cidreira e erva doce para a insônia, guaraná para o cansaço,
unha de gato para as alergias e inflamações, e tinha também: alfazema, agrião, alecrim, alho,
arnica, citronela, babosa, camomila, capim-limão, erva cidreira, eucalipto, hortelã, açafrão,
louro, tomilho, valeriana. Toda vez que ia lá conhecia uma planta com utilidade diferente. O
cheiro que invadia a sua banca irradiava por todos os arredores do Pavilhão das Tartarugas.
Ainda me lembro do cheiro do óleo de andiroba e da copaíba que minha mãe passava toda vez
que me ralava jogando bola ou correndo fazendo meninices.
— Júlia, vai brincar com o Amarinho! — disse Dona Zélia enquanto tentava vender à Soraya
um de seus produtos.
— Tá booom. — disse Júlia meio impaciente.
Júlia tinha quase a mesma idade que eu, porém ela era mais madura pois desde
pequena teve que cuidar dos irmãos menores em casa. A gente gostava de brincar de pique-
esconde e de ficar vendo os barcos vindo do interior e trazendo todo tipo de mercadorias.
Nesse dia, tivemos a ideia brilhante de descer às escadas do porto e ir olhar de perto dos
barcos escondidas das nossas mães. Distraído conversando acabei pisando em falso na
escada, que levava ao porto, e caí nas águas escuras do Rio Negro.
— Amaro! — gritou Júlia, desesperada ao ver que não sabia nadar.
— Socorro! — disse já indo pro fundo.
Júlia prontamente pulou na água para me ajudar. Na hora, não pensou muito bem no
que estava fazendo e só depois de ter caído na água percebeu que não teria forças para tirar
nós dois à nado. Pessoas que estavam aos arredores logo correram para ajudar e conseguiram
nos salvar. Júlia tinha bebido muita água do rio e não estava acordada na hora que saiu da
água. Fiquei desesperado e achando tudo que estava acontecendo era culpa minha. Minha
mãe sempre falava que eu não devia ficar brincando perto da água. Júlia de repente começou
a tossir e a água foi saindo de sua boca. Senti um alívio muito grande ao ver que ela estava
bem. Nossas mães já ficaram sabendo do ocorrido e correram para onde estávamos e

começaram a nos abraçar de felicidade, enquanto elas disparavam lições morais e pequenos
puxões de orelha.
Passado esse episódio. Ainda fiquei mais um mês em Manaus até que surgiu uma
oportunidade para minha mãe ir trabalhar em São Paulo, numa empresa de confecções. Mas,
aquela minha última ida ao mercado ficou gravada na minha memória bem como a promessa
que fiz de um dia voltar a Manaus e reencontrar a Júlia. Queria ter a chance de agradecer pelo
que ela fez.
Vinte anos depois, estou de volta ao Mercado Mucipal Adolpho Lisboa e ao entrar pela
entrada da Rua dos Barés, já pude perceber a mudança no local. Tudo estava reformado,
parecia que em vez do mercado ter envelhecido como eu, ficou mais jovem como se o ar
daquele lugar tivesse as propriedades medicinais das plantas da Dona Zélia deixando as
coisas renovadas. Relembrei então dos cheiros e sabores que a tanto tinha esquecido. Logo de
cara, o cheiro doce do tucumã, que acabou de ser descascado, e do queijo coalho, e ao andar
mais um pouco, chego ao Pavilhão das Tartarugas e o cheiro já foi ativando todas as minhas
memórias daquele lugar. Foi lá onde reencontrei Júlia, agora ela era dona da banca de sua
mãe e ao me ver não me reconheceu. Mas, assim que falei com ela, parece que ela lembrou.
— Olá!? Você é a Júlia?
— Sou sim. Bom dia.
— Sou o Amaro, não sei se você lembra de mim, faz um tempo desde que nos vimos pela
última vez, lembra?
— Amarinho? Não acredito, achava que nunca mais veria você! — Júlia me deu um abraço
caloroso e foi me explicando que agora era a dona da banca de sua mãe.
— Júlia, obrigado por aquele dia. Acabou que minha mãe foi para São Paulo e nunca tive
chance de te agradecer.
— De nada Amaro, sei que você também faria isso por mim e que baita de um susto levamos
hein? — disse Júlia sorrindo e lembrando o ocorrido.
— É mesmo! Vou querer levar esse jambu. Estou morando aqui em Manaus novamente e
voltarei mais vezes pra gente conversar e comprar mais seus tesouros amazônicos.
— Volte mesmo, disse sorrindo. O mercado estará sempre de portas abertas para você. Só não
vai cair no rio.
— Pode deixar. Agora eu sei nadar viu? — me despedi sorrindo.
Saí de lá me sentindo tão bem e reconectado com meu passado. Vejo que a
proximidade das pessoas e a história desse lugar fazem do mercado um lugar maravilhoso. Eu
sinto que também faço parte da história daqui, talvez não como Júlia, ou como o senhor Alarico
José Furtado, que inaugurou o mercado, mas, assim como eles e como tantos que passaram,
construíram a história de sucesso desse belo patrimônio.

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Inspiração

O conto inteiramente fictício mas ambientado em um local real tenta registrar como o Mercado Adolpho Lisboa marca gerações e gerações de Manauaras com histórias pessoais. Os cheiros, cores e sabores ficam guardados mais profundamente em nossa memória e o conto foi uma tentativa de revisitar ou visitar esse Mercado Histórico de nossa cidade.

Sobre a obra

Um conto fictício, onde o protagonista se chama Amaro. Nos conta uma história de sua relação com o mercado municipal da cidade. A abordagem narrativa tenta criar a sensação dos sentidos como: visão, audição, olfato, paladar.

Sobre o autor

Sou de Manaus e trabalho na Caixa desde 2010. Formado em Design Gráfico tenho como hobbies: Fotografia, Filmes, Games.

Autor(a): JADER DE OLIVEIRA MENDES (Jader Mendes)

APCEF/AM


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