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Memórias de uma panela tagarela
Chega! Não aguento mais! Tenho que romper o silêncio deste armário. Preciso desabafar. Por favor, tenham paciência comigo. Vocês não imaginam o quanto uma panela tem a dizer.
“Ah, mas as panelas não falam”, alguém vai implicar. Primeiro, o que a música diz é que “as rosas não falam”. Eu bem sei, que a Neide, a empregada aqui da casa, adorava ficar ouvindo essa música do Cartola. Em segundo lugar, as panelas falam sim. Fazem muito barulho, aliás.
Não faz nem um ano, eu estava no auge da glória. Tinha praticamente sido promovida a percussionista. Os panelaços eram a febre do momento. Aqui no prédio da minha patroa, a Dona Lúcia, dia sim dia não, a única coisa que se ouvia era panela batendo. Já estava achando que no ano seguinte eu ia participar da bateria de uma escola de samba!
Mas eu não entendo. Hoje não se ouve mais panela. Nem cozinhando feijão, nem refogando couve, nem fritando batata… é um silêncio ensurdecedor! Minhas amigas estão aí pelos cantos, deprimidas.
E eu não sou diferente. Estou sim muito chateada, esquecida no fundo do armário. Preciso desabafar, são tantas coisas… Estou me sentindo rejeitada, sabe? São tantos anos de convivência e, de repente, aparecem umas panelas novas, francesas, metidas a besta. “Le sei lá o quê” é o nome dessas peruas. São umas panelas bonitinhas, mas ordinárias. Deixa pra lá, não vou me abater com isso.
Querida leitora, querido leitor, peço só uns minutos da sua atenção. Vou lhe contar minha história. Vocês não imaginam quanta coisa se passa na vida de uma panela.
* * *
Cheguei ao lar de Dona Lúcia assim que ela se casou. Sim, fui um presente de casamento da Dona Lúcia e Dr. Pedro. Na época, Lucinha e Pedroca. Eram jovens cheios de sonhos. Não tinham um tostão furado, mas formavam um casal encantador.
Assim, minha chegada foi muito comemorada. Aliás, como de todos os outros presentes, que vieram para equipar o lar daquele casalzinho recém-casado. O jogo de pratos, o faqueiro, as travessas… somos todos daquela época. Ô tempo bom!
A situação financeira não era fácil. Assim que se casaram, Lucinha e Pedroca foram morar de aluguel numa casa de subúrbio. Naquela época, Dr. Pedro já era advogado, mas não conseguia causas muito grandes, sabe? Ele acompanhava alguns divórcios, inventários, coisas do tipo. Mas a renda era muito incerta. Dona Lúcia trabalhava como professora de escola primária. O dinheiro era pouco, mas o afeto era muito. Por pouco que tivessem, os dois cuidavam muito bem da casa, sempre muito limpa, não se via um grão de poeira sobre os móveis.
Não demorou muito, vieram as crianças. Ai, que emoção! Ver a Lucinha, tão delicada, aquela carinha de menina, sua barriga crescendo pouco a pouco… e, no fim, eu vi nascer uma mulher, carregando nos braços um menino lindo, o Pedrinho. Sei que uma panela não pode ser mãe, não no sentido humano do termo, mas vocês não imaginam a emoção de quando aqueci a primeira mamadeira do bebê! Naquela época, não tinha micro-ondas e as mães esquentavam a mamadeira no banho-maria, entende? Uns anos mais tarde, foi a vez da Claudinha. Uma criaturinha encantadora, chorona como ela só.
Dona Lúcia nunca deixou de trabalhar. E nem podia. Queira ou não, o emprego de professora era a única fonte fixa de renda da casa. Ela sempre foi muito esforçada. Jamais ficaram provas por corrigir ou aulas a preparar por causa das crianças. Algum tempo depois do nascimento da Claudinha, ela foi promovida a coordenadora. Aumentou o salário, aumentaram as responsabilidades. Não dava mais pra dar conta de cuidar da casa e dos problemas do trabalho.
Foi nessa época em que eu conheci aquela que viria a ser minha melhor amiga, a Neide. Ela veio trabalhar como doméstica na casa da Dona Lúcia. Neide veio de longe, do nordeste, em busca de uma vida melhor aqui em São Paulo. As saudades da terra natal ela matava cantando as canções de lá, e outras músicas populares. Também tinha o hábito de falar sozinha. Quer dizer, falar com as paredes e com a gente, a turma da cozinha – panelas, pratos, talheres, utensílios. Conversava também com o rádio. Acho que foi com ela que eu me tornei uma panela tagarela.
* * *
O tempo passou, as crianças cresceram, Dr. Pedro construiu uma reputação invejável como advogado, Dona Lúcia virou diretora da escola. A família não morava mais numa casa de subúrbio. Agora tinham financiado um apartamento num bairro nobre da cidade.
Todos tinham melhorado de vida. Porém, nos últimos anos, a vida da Neide é que mudou bastante. Não, ela não virou uma madame rica, nem nada. Mas pôde comprar um carrinho usado, pra não chegar atrasada no trabalho. Finalmente conseguiu o cantinho dela, um apartamento do Minha Casa Minha Vida. Até pegou avião pra visitar os parentes no nordeste. Além disso, o filho dela, o Neílson, entrou na faculdade e vai ser doutor.
Estranhamente, Dona Lúcia não parecia muito contente com as coisas que estavam acontecendo, apesar de a prosperidade nunca ter se afastado do seu lar.
Eu primeiro pensava que ela estava mesmo era estressada. Imagine ter que cuidar de uma escola, com tanta criança, tanto jovem, tanto problema… escola é um problema sério hoje em dia: tem violência, tem bullying, indisciplina. Uma loucura!
Dona Lúcia andou até indo numa psicóloga. Aliás, ela vai até hoje. E toma um monte de remedinhos antes de dormir. Pobre Dona Lúcia!
* * *
Mas percebi que o problema não era esse. Se fosse, os remédios ajudavam. Se a culpa fosse do estresse, com a terapia a mulher melhorava em vez de piorar. É ou não é?
Eu acho que o problema era outro: sabe-se lá por que sempre que a vida da Neidinha melhorava, o humor da Dona Lúcia azedava.
Primeiro foi o carro. Lembro como se fosse o hoje o dia em que a Neide chegou no seu “poisé”, velhinho mas bem cuidado. A Dona Lúcia fez um interrogatório com a pobre mulher: “como é que você vai pagar esse carro?”, “em quantas prestações?”, “você vai deixar o carro na rua?”, e um monte de perguntas. Coitada da Neidinha, estava tão feliz com seu carrinho, foi embora até meio cabisbaixa aquele dia.
Depois foi o apartamento da Neide. Após anos vivendo num barraco de madeirite, finalmente ela conseguiu a casa própria. Foi contemplada num sorteio da prefeitura para o Minha Casa Minha Vida. Ela teve que se ausentar alguns dias para as reuniões preparatórias, visitar o apartamento e pegar as chaves. Nos dias seguintes, Dona Lúcia fez com que ela trabalhasse em dobro.
Teve também a viagem de avião. Dias antes de entrar em férias, Neidinha estava radiante. Ia matar as saudades da sua turma lá em Pernambuco, sem ter que perder dias de descanso na viagem de ônibus. Ela cantarolava, para diminuir a ansiedade, já que era a primeira vez que ia para a sua terra pelo ar. Ficava imaginando como era ver tudo lá de cima, entre as nuvens. “Tira essa cabeça das nuvens, mulher!”, advertia Dona Lúcia.
Mas o que deixou Dona Lúcia tiririca foi ver o filho da Neide entrar na faculdade, enquanto Pedrinho não tinha conseguido, e continuava no cursinho.
* * *
Neílson sempre foi um menino esforçado. Vez ou outra Neide o trazia em casa, quando a creche estava em greve, ou não tinha com quem deixar o filho durante as férias escolares. Ele sempre foi muito calado, introspectivo, bem diferente da mãe. Mas tinha os olhos muito vivos e observadores.
Fato é que, seja pelo seu esforço, seja por oportunidades que surgiram, como as cotas, Neílson garantiu seu lugar na universidade. Mais que isso: ele conseguiu uma nova perspectiva de futuro.
Quando atendeu o celular e recebeu a notícia do filho, Neidinha não se conteve e foi às lágrimas. Quase deixou queimar o arroz que eu estava cozinhando. Se pudesse chorar, faria isso junto com ela, tamanha a emoção que eu sentia.
Logo que chegou na cozinha, Dona Lúcia percebeu os olhos marejados da Neide, e com uma feição piedosa se aproximou da empregada: “Está tudo bem, Neide? O que aconteceu?” Em meio às lágrimas, com a voz embargada, Neide respondeu: “É o Neílson, Dona Lúcia!” A patroa já fazia uma cara de espanto quando, entre soluços, a mãe orgulhosa terminou: “Ele entrou na faculdade!”
Imediatamente a atitude de Dona Lúcia mudou: a postura acolhedora deu lugar a uma expressão zangada. “Ah, mas também com essas cotas, não é Neide?”, ironizou a patroa. Neide, porém não se ofendeu. Não importava como Neílson havia chegado lá. O fato é que ele havia chegado. “Não tem importância Dona Lúcia, eu só sei é que ele há de ter um futuro melhor!”, finalizou Neide.
* * *
Desde então, esse ressentimento foi crescendo. E não foi só a Dona Lúcia, não. As amigas dela também iam por esse mesmo caminho. Por mais que não lhes faltasse nada, até pelo contrário, o progresso dos mais humildes incomodava – e muito – essa gente.
Foi quando começou a moda dos panelaços, da gente vestida de verde e amarelo, cultuando um pato gigante de borracha. Parecia tudo um grande carnaval fora de época. Nesse tempo é que eu, até então uma exímia cozinheira, fui como que promovida a percussionista, se assim podemos dizer.
Não podia a presidenta aparecer na televisão, que a turma do prédio da Dona Lúcia se alvoroçava, pegava a panela e saía protestar. Bem, o pessoal não saía na rua. Mas, pelo menos, conheci a varanda gourmet do apartamento da Dona Lúcia. Eu estava me sentindo é muito chique, já que os panelaços apareciam até no noticiário!
As discussões eram quentes na cozinha. Os garfos, esses talheres de esquerda, bradavam: “É golpe! É golpe!” As facas, por sua vez, sempre à direita, faziam comentários afiados: “Imagina se é golpe, está tudo de acordo com a Constituição.” As colheres ficavam em cima do muro: “Com tanto que seja bom para o país, estamos de acordo.”
E era isso o que repetia a Dona Lúcia, que toda essa barulheira era para melhorar o país. Tanto barulho fizeram que, no fim das contas, acabaram derrubando a presidenta. Até onde eu sei, porém, o país não melhorou. Pelo menos não na casa da Dona Lúcia.
* * *
O número de clientes que o Dr. Pedro atendia foi aos poucos diminuindo. As causas ganhas nos tribunais também tinham valores mais modestos. Dona Lúcia, por sua vez, começou a receber salários atrasados da escola, que é particular. Muitos alunos tiveram que deixá-la porque os pais não tinham mais condições de pagar a mensalidade.
Tudo isso, no modo de ver da Dona Lúcia, era culpa da crise que a presidenta derrubada tinha deixado. Mas logo um tal de Mercado (seria o Walter?) ia recuperar a confiança e tudo melhoraria: os empresários voltariam a investir, empregos seriam criados, as pessoas comprariam mais coisas… o que eu sei é que, no fim das contas, ia ter mais comida na panela!
Só que o tempo foi passando, passando e nada disso acontecia. Pelo contrário. Não era só o salário da Dona Lúcia que atrasava. As prestações do apartamento em que ela agora morava também começaram a atrasar. Assim como as outras contas.
“Tempo de vacas magras”, repetia Dona Lúcia. Ela não entendia a razão disso. Será que não foi um erro tirar a presidenta do jeito que ela foi tirada? Pois não se vota a cada quatro anos? Que não votassem nela de novo, oras! Mas esse é apenas um palpite de uma panela tagarela, não deem importância.
De fato, a patroa não pensava assim. Ela cismou que a culpa de tudo isso – de tudo mesmo – foi o ritual de bater panela na sacada. “Bater essa panela deu um baita azar, credo!”, repetia ela. Pronto, agora a culpada era eu!
Com tudo isso, desde então, fiquei esquecida no fundo do armário. Dona Lúcia nunca mais tocou em mim. Nem na colher de arroz com que ela me batia. Ouvi rumores de que ela se livrou das roupas verde e amarelo. Tudo indica que eu sou a próxima a ir para o ferro velho! Como é triste o fim de uma panela! A vida não é justa!
* * *
Pois então, querida leitora, querido leitor, foi assim que cheguei ao fim dos meus dias, abandonada no fundo de um armário, esperando a hora de ser descartada como um objeto sem serventia. Agradeço por terem me ouvido tanto tempo, me sinto aliviada e mais preparada para encarar o meu triste destino…
Opa! Estou ouvindo uma movimentação na cozinha. As vozes da Dona Lúcia e da Neide se aproximam do armário. Elas estão aqui perto da porta. Deixa eu ficar quieta!
– Neide, sinto muito. – começou Dona Lúcia – mas não tenho como continuar pagando para você trabalhar de mensalista.
– Tudo bem, Dona Lúcia. Eu entendo, está difícil pra todo mundo. – respondeu Neide.
– Eu sinto muito mesmo. Você é como se fosse da família…
– Imagina, Dona Lúcia. A senhora é que me recebeu de braços abertos quando eu cheguei de Pernambuco.
– Sabe, Neide… vamos nos mudar daqui, para um apartamento menor. O Pedrinho vai estudar fora, fazer intercâmbio. Logo vai ser a vez da Claudinha…
– Nem me fale, Dona Lúcia. Neílson foi morar no alojamento da faculdade, fica um vazio em casa! Que saudades daquele tempo em que essa meninada passava correndo pra lá e pra cá…
– Pois é, Neide. A gente cria os filhos para o mundo, não é mesmo? Mas não é fácil!
– Ah, não é mesmo! Mas esses meninos vão dar muito orgulho pra nós, a senhora vai ver!
– Tomara! Viu, Neide – disse Dona Lúcia mudando de assunto –, vamos nos mudar para um apartamento menor, e eu preciso me desfazer de algumas coisas. Você não quer levar umas panelas para a sua casa?
– Posso mesmo, Dona Lúcia? Que desperdício! Tanta panela boa que a senhora tem… posso levar alguma?
– Aqui do armário, quantas quiser, Neide.
– Sério mesmo? Ô Dona Lúcia, que benção! Pois se tem uma coisa que eu vou precisar daqui pra frente é de panela, sabe?
– É mesmo, Neide? Mas o que você vai fazer com tanta panela?
– Sabe, Dona Lúcia, eu mais umas amigas lá do condomínio estamos nos organizando pra fazer uns doces, uns bolos, uns quitutes pra vender lá no bairro!
– Puxa Neide, então quer dizer que você vai virar uma empreendedora?
– Não sei o que é esse negócio não, Dona Lúcia. Só sei é um jeito de se virar. Ainda mais agora que Neílson está crescido e criado. É uma coisa pra ocupar a cabeça da gente e, se der, ganhar um troquinho né?
– Tá certo, Neidinha. Boa sorte pra você e suas amigas. Agora, vamos, escolha as panelas que você quer.
– Pois eu posso ficar com todas?
– Todas? Mas é claro! Só não aquelas…
– Ah, sim, as panelas francesas, “Le não sei o que”. Não, muito obrigado, Dona Lúcia.
* * *
Por essa, nem eu esperava. No fim das contas, eu e minhas amigas, que estávamos esquecidas no armário da Dona Lúcia, viemos parar na casa da Neide. Parar é jeito de dizer, porque não paramos um instante! Andamos pra lá e pra cá, cozinhando um monte de delícias, que a Neide e suas amigas saem vendendo por aí.
E eu que achava que meu próximo destino seria o ferro velho, estou me sentindo realizada. Sinto que agora sou um instrumento que ajuda a realizar sonhos. Aliás, sonhos doces, saborosos. Nunca é tarde pra recomeçar. E isso vale até pra uma panela de meia idade. Afinal, como diz a canção do Sérgio Reis: “não interessa se ela é coroa, panela velha é que faz comida boa!”
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Inspiração
No último ano, as panelas se tornaram um importante ator na cena política nacional. De uns tempos pra cá, porém, elas andam meio esquecidas... tentei imaginar como se sentiria uma panela nessa situação.
Sobre a obra
O conto narra os acontecimentos na vida de uma panela, desde a chegada ao lar, a transformação em instrumento de protesto e, por fim, o esquecimento. Tudo isso na perspectiva da própria panela, tendo como pano de fundo uma crítica social.
Sobre o autor
Além de uma ferramenta de trabalho, a escrita para mim traz a possibilidade de exercitar a imaginação e explorar o universo das palavras. Estou me aventurando nesse mundo das letras!
Autor(a): EDUARDO TOMOHARU CHAVES KIMPARA ()
APCEF/SP