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Sombras
Ela virou o rosto, sorriu caminhando em direção à porta e não olhou mais pra trás. Fiquei sentado na cama pensando se deveria me levantar pra fechar aquela porta ou se a deixaria aberta, enquanto via sua sombra se afastar. Olhei ao redor tentando encontrar a chave do carro ainda meio cego pela claridade que invadia a sala. Fechei os olhos e desisti de procurar. Permaneci sentado relembrando os últimos meses e pensando sobre a porta. O vento já começava a invadir minha casa e trazer coisas lá de fora, mas eu simplesmente não me mexia. De certa maneira era bom que algo revirasse meus papéis, meus objetos - algo que eu não poderia controlar. Olhei pras palmas das minhas mãos e esbocei um sorriso ao lembrar das possibilidades que já havia visto em tê-las abertas. Fechei as mãos e o sorriso enquanto inspirava o cheiro de chuva. Eu sabia pra onde ela estava indo. Sempre soube que ela não olharia pra trás e que eu não a seguiria. O que não começou em novembro chegou a um fim. Decidi preencher as prateleiras desocupadas e usar os cabides do armário. Enquanto pensava se teria o que colocar nos espaços vazios, senti o vento ficar mais forte, gelando meu peito e me empurrando pra fora da cama. Só o que eu precisava fazer era me levantar e fechar a porta, mas meus pés não se moveram. Quando nos vimos pela primeira vez eu tinha o mesmo pensamento longe, a mesma sensação de estar no lugar errado e não ter energia pra me mover. Lembrei dela dizer que teve a sensação de que eu estava contrariado, de que estava onde não queria estar. Preferi não contar a ela que a impressão que tive quando finalmente conversamos, no último dia do evento, era que ela nos forçava a notá-la com suas opiniões e sorrisos. Na verdade foi bom não ter dito nada, há muito já entendera que ela não precisava mover seus lábios para arrebatar atenção.
Joguei o corpo pra trás e puxei o travesseiro sob minha cabeça. O cheiro que senti era o meu – meu suor e meu perfume. Não havia fios de cabelo ou coisas fora dos seus lugares habituais. Sem virar o rosto alcancei meu relógio sobre o criado. Ainda faltavam três horas até que tivesse que sair. Quando nos conhecemos, nossas conversas tomavam horas dos meus dias e era sempre a necessidade de voltar às nossas vidas que fazia com que parasse de investigar tudo sobre aquela mulher. Tínhamos o mesmo signo, os mesmos gostos incomuns a mesma reserva sobre nós mesmos... Não a surpreendia com coisas que não costumava confessar e perdi o medo de me mostrar. Pouco depois de começarmos a nos falar ela já conhecia minhas vaidades e medos inexplicáveis e já entendera que eu estava tentando trazê-la pra perto e ainda assim continuou ali, se aproximando e se afastando, me empurrando e puxando. Não sabia dançar, mas estava ritmado com seus pés. Voltava pra casa todos os dias pensando no início daquela estória e esperava o momento em que nos calaríamos um diante do outro, sem mais o que dizer e sem mais o que fazer. Pensava em como seria sentir seu cheiro, como seria envolver sua cintura e como seria me calar diante dela. Até na minha cabeça tudo soava meio bobo. Ao mesmo tempo que ria dos meus próprios pensamentos, me preparava para o dia que em que nos encontraríamos.
Pus meus pés pra fora da cama e enfrentei o chão frio pra chegar até o chuveiro e me preparar para encarar mais um dia na minha nova velha realidade. Na verdade, de alguma forma eu sempre estive pronto pra voltar pras minhas coisas e pessoas habituais, mas nunca quis pensar que teria que fazê-lo. Entrei no chuveiro e enquanto a água escorria na pele fiquei lembrando da noite em que finalmente decidimos nos reencontrar. Chovia muito e eu estava exausto, mas mesmo assim seria o desfecho perfeito pra um dia difícil e pra meses de espera. Não sabia exatamente o que esperar dela ou mesmo de mim. Naquela noite abandonei meus planos em casa - não por não querer colocá-los em prática, mas por não ter conseguido prever a força da sua presença e minha fraqueza diante da possibilidade de não poder levá-la comigo. Conversamos e sorrimos, mas não era eu que estava lá. Pelo menos não era o eu que planejei ser e acabei me transformando em uma versão entre meus planos e minha realidade. Lá mesmo ficou claro que este dia chegaria, embora até agora há pouco eu não tenha me permitido acreditar nisso. Voltei pra casa só e só com a lembrança do seu cheiro e dos momentos em que me calei diante dela, por medo de não dizer a coisa certa.
Mal podia enxergar através do vapor e minhas mãos estavam enrugadas. Enrolei a toalha na cintura e voltei pro quarto. Meus projetos estavam espalhados no chão e um dos travesseiros estava caído aos pés da cama. Já era quase hora de sair e precisava me apressar pra não me atrasar pelo terceiro dia seguido. Só quando começou a tocar "Going to California" percebi que deixara o som ligado a noite toda. Puxei a única camisa passada do armário e demorei uns três minutos pra abotoá-la, ainda remoendo tudo o que havia se passado naquela noite que não cabia em doze horas. Juntei rapidamente minhas coisas e contei as moedas pro ônibus. Caminhei até a saída e fiquei segurando as chaves por alguns segundos até decidir voltar e abrir a janela. Saí e tranquei a porta. Enquanto caminhava olhava minha sombra desaparecer sob a sombra das nuvens, despreocupado com o fato de que poderia não estar tudo lá quando eu voltasse pra casa. Me apressei em proteger o rosto quando senti uma gota alcançar meu queixo. Apertei os passos e olhei pra trás pela última vez antes que minha casa ficasse pequena demais pra eu enxergá-la.
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Inspiração
Pensei em fazer um texto sobre um amor platônico em que não ficasse claro se algo concreto havia acontecido ou se era somente a imaginação do narrador.
Sobre a obra
Tentei fazer uma narrativa em primeira pessoa, onde não ficasse claro se tratava-se de algo platônico ou de fatos acontecidos. Procurei das força às entrelinhas e à interpretação de cada leitor, nas passagens que falam de acontecimentos cotidianos.
Sobre o autor
Eu sou arquiteto e gosto de tudo relacionado a artes. Gosto de fotografia, literatura e desenho e atualmente estou praticando a pintura em tela e objetos de decoração e recentemente me aventurei na carpintaria amadora. Fico feliz quando termino uma obra que comecei, mesmo que seja de forma amadora, pois meu objetivo é sempre me superar.
Autor(a): MARCO AURELIO GOMES DOS SANTOS ()
APCEF/MG