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A MENINA QUE NÃO TINHA MÃE
O sol chaleirava violeta no meio de um céu desanuviado. Envolvia dentro de uma redoma de quentura o velho Cajueiroí. Repentinamente, esse cajueiro deixou de ser uma estaca na cerca que rodeava todas aquelas terras esturricadas e rasgou o chão até chegar no terreiro do imponente castelo de taipa no qual morava a menina que não tinha mãe. Atento ao que dentro da saleta do casarão apalaçado se passava e como a portada estava fechada, o cajueiro desesperado jogou um dos seus cajus com uma força tão grande que ao receber a pancada a porta caiu no chão. A claridade daquele sol já despurpurada desenhou naquela penumbra uma cangaceira de pé segurando uma peixeira. Por detrás da bandoleira, a menina debruçada por sobre um empoeirado piano parecia dormir. Observando de longe - abrasador por cima de uma caatinga de galhos estaladiços - o soberbo sol entendeu que pelo rasgar do cajueiro a menina finalmente tinha sucumbido. As nuvens agora já acarameladas faziam tranças de fumaça no céu em comemoração do que parecia ser o fim daquela menina. Elas haviam convencido a arrogante estrela de que a cangaceira desertada seria a derrota da até então irrendível criança. Naquela floresta de umbuzeiros, mulungus, ingazeiros, juazeiros, baraúnas, aroeiras, imburanas, angicos, cactos, mandacarus, xiquexiques, caroás, barrigudas, todos mortiços, ela pelejava e vencia as agruras que o sol lhe impunha de cima do seu trono de chamas. Vencia porque em meio àquele sofrimento todo ela se valia do grande telheiro que tinha defronte do velho palacete que a abrigava, um telheiro que mirava para a longínqua porteira e aliviava a gastura dos seus olhos ocasionada por uma claridade incessante, fazendo com que a menina enxergasse, percebesse que além da distante cancela existia uma estrada, uma esperança de escapar.
No dia anterior, ao abrir os empoeirados olhos, os lábios ressecados da menina por um instante sussurraram a palavra noite. Apenas por um breve momento a felicidade umedeceu os seus ásperos olhos: a escuridão havia chegado! Depois de anos abrindo e fechando suas vistas para a claridade, a noite enfim pincelara o céu de negridão. Ia se vestir de penumbra. Só as estrelas a iluminaria! E a cangaceira não ia poder encontrá-la no escuro da noite que não mais acabaria. Foi quando uma faísca cuspida pelo pavio de um amassado candeeiro tocou o rosto pálido da menina. Ela estava caída no chão dentro da camarinha e aquele queimar a fez despertar para um pesadelo. Virando a cabeça para o lado da janela, constatou horripilada que uma réstia do telhado descia até tocar o chão e atravessava aquele quarto como um espeto de fogo. O macabro sol ainda estava lá por cima de tudo. Um toque forte na tecla do piano a fez olhar temorosa para a porta. A cangaceira que do casarão se apossou poderia matá-la a qualquer momento. A menina não conseguia lembrar se aquela bruxa tinha chegado na sua casa antes ou depois da sua mãe ter falecido de fome. O sol passeava por cima daquela fazenda de lá para cá numa carruagem fundida por labaredas: secara cacimba, engilhara pé de feijão e milho, colara couro nos ossos de bois moribundos. A baronesa via a sua despensa e o seu pote minguarem a cada dia, até que deixou de beber e comer para que sobrasse para a sua pobre filhinha. A cangaceira chegou ferida. Levara um tiro que vazou um dos seus olhos. A princípio se mostrou boa com palavras meladas de mel e abraços que traziam proteção e a menina cuidava do olho dela lavando com água de dicuri. Depois de curado o ferimento, a jagunça se transformou numa cascavel. Só não deu fim à criança logo porque temia que a volante a encontrasse: iria usar a menina como refém se isso viesse a acontecer:
- Minha senhora, já coloquei o que achei hoje na sua despensa. Ainda consegui encontrar dentro da caatinga um ninho com um ovo azul de nambu. A senhora pode merendar ele mais tarde ou agora se quiser. Mas lutei tanto nessa jornada que ao chegar adormeci aqui no chão do quarto. Dessa vez tive que ir até muito longe para encontrar algo de comer, caminhando por cima de espinhos. - disse a menina tremendo ao ver a bruxa entrar no recinto tirando a grande faca da bainha.
- E você terá que ir ainda mais distante! Daqui a pouco, merendo esse ovo de nambu e você vai comer os farelos que sobrarem da minha mastigação, os pedacinhos que conseguirem escapar da minha boca e caírem no chão. Mas e amanhã, menina? Se você não trouxer o que comer para mim, se você não encontrar mais comida dentro dessa caatinga que nos sufoca de calor, eu vou atiçar a lenha no fogo, vou colocar você na panela, esmigalhar o último caroço de sal e transformar você no tempero do meu angu! Se demorar a cair um borrifo de chuva, é bem provável que eu venha a falecer por falta de comida antes mesmo de sede porque no pote a água ainda está pela metade. Mas fique certa de que antes de fechar os olhos, eu arroto o teu cheiro. – intimidou a cangaceira. Antes da menina dizer qualquer coisa, a malfeitora pegou ela pelo braço e violentamente a arrastou até a cozinha. Jogou a menina por cima de um tamborete e ameaçando com a peixeira perguntou:
- Menina, agora mudando de assunto. Veja: por que é que aquele cajueiro lá no terreiro tem sido sempre verde, se a chuva se esqueceu de nós nesse sertão e tudo em derredor tostou?
- Eu não sei não, minha senhora! O cajueiro está cheio de lagarta de fogo e tenho medo de me aproximar dele e me queimar. - respondeu a menina olhando para o pote com um rosto sem expressão. Ela não podia deixar transparecer nada. Uma saliva de sabor de vingança escorria da sua boca. A cangaceira já andava desconfiada dela. A água do pote rareava a cada dia e somente as duas canecavam. Era o calor do sol que estava dando fim a água dizia sempre a menina quando a cangaceira questionava.
O som desafinado de um piano ecoava ao longe. Era o único som audível naquela caatinga emudecida. E enquanto a menina tocava Carlos Gomes, a bandoleira pegava no sono. Todos os dias eram assim. Um sono ao que parecia profundo. A cangaceira sonhava sempre com o seu pai desesperado no terreiro da sua fazenda tentando consolar a sua mãe desalentada por vê-la partir ainda mocinha raptada por um cangaceiro que disfarçado de beato ali parara para pedir uma caneca de água. Na saleta, o som do piano era substituído cuidadosamente pelos ruídos das desgastadas alpercatas que calçava e pelos batuques gritados pelo coração amedrontado da menina. Se a ferrabrás acordasse, descobriria tudo e a mataria. Ela saiu da sala e depois de percorrer cautelosamente um longo corredor adentrou na cozinha. Uma fina fumaça saia de um braseiro quase apagado no fogão de lenha. As pontas dos pés alevantadas fizeram com que ela tocasse num copo pendurado num gancho na parede. Depois de tirá-lo, encheu de uma fria água no pote em cima da cantareira. Sem fazer barulho, ganhou o terreiro pelo oitão. Um vento quente lambeu a menina. Estranhamente ela sentiu frio. Mas o enfrentou. Trêmula, chegou bem pertinho do velho Cajueiroí e chorando descontroladamente despejou a caneca de água no chão. Ele era a sua derradeira esperança. Nas suas rezas, de joelho, antes de dormir, ela implorava a Nossa Senhora que com aquela água o cajueiro pudesse crescer, tornando-se maior que todas aquelas esqueléticas árvores, estapeasse as invejosas nuvens, convencesse a lua a guerrear contra aquele perverso sol e vitorioso chegasse até o céu. Subindo pelos galhos do cajueiro, ela conseguiria ver a sua mãezinha que tanta amava e que partira tão precocemente, morta pela fome. As duas se abraçariam e desceriam para o chão com asas de chuva e no meio de uma caatinga alagada venceriam finalmente aquela cangaceira mau. Mas um murmúrio fez a menina se virar, a bruxa estava de cócoras amolando uma grande faca na soleira da porta. A malfazeja descobrira tudo! Antes de principiar qualquer pensamento de escape, de fuga, a cangaceira já a arrastava para o casarão e a jogava por cima do piano. O grito da menina foi tão alto - testemunhou horrorizado o cajueiro - mas não fez avoar pássaro algum. Tudo estava morto.
O velho Cajueiroí era mais antigo do que o castelo de argila que ele avistava naquele instante. Era uma árvore não natural naquela floresta de facheiros. Veio de longe ainda castanha trazido por uma tropa de comboieiros que passava na estrada revolvendo espinhaços de cobra no chão. Descastanhado, teria sido jogado por sobre a terra e ainda se admirava de como teria vencido a areia quente e folhado para vida. Depois ele passou a ser o único sombreiro no terreiro do palacete do Barão do Poço da Vaca: uma nódoa verde num cobertor acobreado. Ah, como outrora esse cajueiro já se sentira importante! Sob sua fresca galharia, descansavam vaqueiros e o seu gado. Comboieiros e os seus burros. Romeiros do Padre Cícero e a sua fé. Retirantes varridos de seus lares pelo pavoroso sol e as suas esperanças. Orgulhava-se de sombrear aos domingos a escrava Gulora. Para os passantes, ela vendia num tabuleiro beiju de massa de mandioca embebido no leite de coco. Lembrava de como ela guardava com cuidado ao final do dia o dinheiro conseguido dentro de uma capanga de couro. Uma freira, que costumeiramente ali descansava pregando a proximidade do fim do mundo, passara certo dia alardeando que o honrado e honesto Imperador havia criado um banco, uma Caixa Econômica, e que era possível a um escravo poupar nele e conquistar a sua carta de alforria. A escrava Gulora pelejava com o gado pelo dia garantindo o que comer e à noite, mesmo alquebrada pela sofrida lida, encontrava força para ralar mandioca e coco no rodete com o intento de fazer beiju, vender, guardar na caderneta de poupança aberta naquele banco e comprar a sua liberdade: como um dia assim aconteceu. O cajueiro agora estava velho. Naquela estrada de chão - que um dia, atrepada numa carroça, Gulora, alforriada, se despedira do cajueiro entre gargalhadas e choro, acenando ao longe com a carta de liberdade nas mãos - só o vento passava remendando retalhos de lembranças. O barão tinha falecido no mês anterior ao nascimento da menina quando numa tarde de um outro verão o sol ateou fogo nos seus pastos e destruiu todo o seu rebanho. Ele morreu queimado tentando salvar um bezerrinho enganchado numa forquilha na cerca do curral. A menina nunca conhecera o seu pai. Muitos anos depois, já nesse verão que judia da indefesa criança, a baronesa viúva morreu de fome. Até os passarinhos que nadavam por entre os maturis do cajueiro desapareceram. O casarão estava em frangalhos apesar de toda a nobreza que ainda se vislumbrava nele. Todas os dias o cajueiro via quando a menina já fraquinha despejava lágrimas nas suas raízes. Ele não podia permitir que a cangaceira matasse aquela criança. Ele já tinha vencido e ajudado tantas pessoas a vencer o sol só com um pedacinho da sua sombra. Então decidido e corajoso, o velho Cajueiroí lascou o chão com toda a força que ainda lhe restava e se pôs para frente no sentido do palacete. No céu, o sol alertado pelas invejosas nuvens se abaixou por cima do mundo de modo que o seu calor transformou os galhos secos daquela caatinga em tições de fogo. Ele se acocorou para se esgueirar de uma lança de frieza jogada em sua direção pela lua. O até então invencível sol tinha sido pego de surpresa. Finalmente a lua juntou um exército de outras estrelas e principiara um contra-ataque. O cajueiro se lançou por cima da cangaceira que em pé na porta se virou e o agrediu com uma peixeirada. O cajueiro recuou com a pontada sentida, mas destemido outra vez avançou e lascou o seu galho mais pesado na moleira da bandoleira que caiu desmaiada na calçada por baixo do telheiro. Chamou pela menina! Ela quase já não tinha forças para falar de tão fragilizada: mas respirava! O velho Cajueiroí a abraçou com os seus galhos mais baixos e dando a volta ultrapassou a cancela da fazenda e ganhou a estrada enquanto aquele mundo ardia em fogo. E de lá do Céu, a lua e o seu séquito de estrelas já com a vitória garantida sobre o sol - transformado agora em apenas uma simples lamparina turvada por uma escura barra de trovoada - viam por baixo de si um mar de brasas sendo atravessado por uma espada verde. Era o velho Cajueiroí que levava consigo a salvo a menina que não tinha mãe!
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Inspiração
Sem a proteção da mãe, uma menina tenta suportar os males que a iminente ausência de comida e água ocasiona a um vivente. O sol lhe impunha empecilhos naquele terrível verão. Uma cangaceira apoderou - se da sua casa e transformou a sua vida num constante desassossego. Mas, um cajueiro ali próximo destemido observava tudo com um olhar de piedade.
Sobre a obra
O conto aborda a questão da seca na caatinga nordestina e de como as pessoas lidam com as suas consequências sobretudo a fome e a solidão. O recurso do maravilhoso, do fantástico, do realismo mágico perpassa toda a história.
Sobre o autor
Nos instantes de lazer, aprecio escrever. Usando da imaginação, exponho através das palavras histórias e sentimentos variados.
Autor(a): JOAOZITO ALMIRANTE SANTOS JUNIOR ()
APCEF/SE