Talentos

Pacata Granjeira

Ninguém sabe ao certo como ele apareceu na cidade. Em uma localidade tão pequena, pacata, tudo se sabe. As noticias rapidamente se espalham, sabe-se lá como.

“Fulano? Ah, é primo de sicrano. O irmão saiu cedo, foi estudar em Fortaleza, dizem até que passou fome. Não estudou, mas tinha tino comercial, puxou ao pai, esperto negociante. Conheceu uma menina da classe alta, casou, caiu nas graças do sogro e se fez.”

“Beltrano? o Pai era pistoleiro em Limoeiro do Norte. Para você ver como são as coisas. Advogado, dos bons. E já tem os filhos bem encaminhados.“

Assim era a cidade, com seus poucos mais de 8.000 habitantes. Um livro em que as histórias eram conhecidas, mesmo as mais escabrosas, falsamente escondidas e que corriam a boca miúda. Granjeira parecia ter parado no tempo. Dizem que teria mesmo regredido. As mesmas ruas de 50 anos atrás. Os mesmos costumes. Uma cidade pacata.

Final de tarde, as calçadas repletas de cadeiras defronte às residências, que com arquitetura despretensiosa davam uniformidade ao desenho urbano. Eram casas com testadas sem recuos, desenhos simples nas platibandas. No conjunto, se destacavam as antigas casas das famílias Oliveira e Aguiar, famílias tradicionais que sempre lutavam pelo controle do município. Outro destaque era a casa fechada no qual morou o único médico nascido na cidade, patrimônio hoje motivo de briga de herdeiros. O grande ícone e orgulho da cidade era sua Igreja, inspiração gótica, ideia dos padres holandeses que chegaram no começo do século XX ao local, que além da herança arquitetônica, deixaram também uma geração, hoje já crescida e miscigenada de brancos com olhos azuis.

Os personagens pitorescos da cidade eram envoltos em um misto de verdade e folclore. Os limites tênues de realidade e ficção eram alimentados pela população e pelos próprios personagens. O comerciante avarento, o padre namorador, a adúltera esposa do prefeito, o louco da praça. Não havia uma única pessoa que passasse à margem de uma história, um caso qualquer, um boato, uma fofoca. Mas ainda assim, era uma cidade que se orgulhava de existir em tranquilidade. Noticias de crimes, não se ouvia. Nem mesmo a assustadora onda de violência decorrente do uso de drogas chegava aos limites do município.

Então um dia o estranho chegou sem maiores informações. Desceu na rodoviária, eram 3 horas da tarde, com duas malas e um violão nas costas. Estatura mediana, chapéu escondendo a cabeleira, ou talvez a ausência dos cabelos, calças jeans e uma camiseta polo branca. Aparentava uns 35 anos. No ponto de vendas da empresa de ônibus, e isso foi descoberto depois, perguntou como chegar à única pousada da cidade. A Pousada Panorâmica ficava a poucos metros da rodoviária. Era frequentada sempre pelos mesmos viajantes; comerciantes que faziam rota na região, vendendo produtos e abastecendo ao comercio local.

Seu nome era Pedro de Abreu. Informação repassada por Cleison Pontes, proprietário da Pousada, a quem perguntasse. E não foram poucos que quiseram saber do novo hóspede. O estranho tinha hábitos também estranhos. Nas duas primeiras semanas, como um relógio suíço sempre cumpria o mesmo ritual. Acordava cedo, informação repassada pela camareira da pousada, tomava café da manhã e voltava para o quarto. Passava parte da manhã tocando violão. Podia-se ouvir o som através da porta. Meio dia saia, descia a ladeira da rua lateral á pousada e almoçava no restaurante que margeava o Rio Caipó. Pedia geralmente uma tilápia frita, com exceção do dia em que, tentando puxar assunto, Carlinhos Garçom sugeriu uma galinha à cabidela. A sugestão foi acatada, mas a conversa não vingou. Voltava para a pousada, e a tarde era de silêncio. Fim de tarde, saia novamente, em direção à praça da Igreja. Dona Ana Karla já observara que ele não se benzia ao passar pela Igreja. Pedia três espetinhos de carne e uma cerveja no barzinho de Paulinho Miau, sentava no banco da praça e observava o movimento das pessoas que transitavam no local de confluência da cidade. Passava duas horas ali, parado, olhando, olhando, até que se levantava e retornava para a pousada.

A pesquisa realizada através do numero do CPF por Joaquim Bastos, dono do mercadinho, aumentou a inquietação. Não devia nada, sem dívidas. Ora, porque alguém sem dívidas iria se esconder em Granjeira? De onde vinha a renda de tal estranho? Especulou-se que era músico.

Thomas, o proprietário da rádio comunitária, em audição através da porta, descartou a hipótese. Péssima voz, desafinado, e violão sofrível. Aliás, agravante a situação de alguém que passa horas tocando músicas estranhas. A gravação, enviada para seu primo na Capital, identificou como sendo músicas de um tal Elomar. Talvez estivesse fugindo de uma desilusão amorosa, com aquela música sofrida.

Era solteiro. A paróquia não identificou registros de casamento. Uma pessoa que chega aos 35 anos sem um casamento decerto é uma pessoa de difícil trato ou traga, talvez, sérios problemas psicológicos. As crianças passaram a ser monitoradas, as jovens já tinham cuidados nos trajetos. No sermão do domingo, Padre Pedro pautou no evangelho de Mateus, 7-15-20 - o lobo em pele de cordeiro.

Pelo bem estar da cidade, inevitável a abordagem. Ninguém melhor que Dona Mazinha Aguiar, sensitiva, ela que do alto dos seus 90 anos se orgulhava de nunca ter errado o sexo dos bebês em vias de nascer. Esperou o estranho descer para o café da manhã. Sentou ao seu lado na mesa, deu bom dia, teve resposta. Não trocaram mais palavras, e nem foi necessário. Dona Mazinha observou que ele colocava o açúcar na xícara antes do café. Saiu rapidamente.

A cidade agora era inquieta. A qualquer momento iria acontecer, e estavam de mãos atadas, expostos à besta-fera.

Um dia o estranho sumiu. Foi visto, e sempre haviam olhos a segui-lo, pela última vez saindo da praça em direção à Pousada. Foram dias maiores ainda de tensão. Evitava-se sair à noite. Decerto ele estava na espreita.

Foi encontrado o corpo semanas depois, já em estado avançado de putrefação. O laudo identificou traumatismo craniano, seis perfurações à bala, o pescoço quebrado.

A vida voltou à normalidade na pacata cidade de Granjeira.

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Inspiração

Surgiu a ideia a partir de um conto de Poe, que tratava na falsa mansidão e hipocrisia humana.

Sobre a obra

Utilizei narrativa simples.

Sobre o autor

"Meu delírio é a experiência com coisas reais"

Autor(a): PAULO ROBERTO PEREIRA DE ARAUJO ()

APCEF/CE