Os olhos do coração

Cresci em uma família deliciosa! A gente morava no interior, em uma cidade bucólica com pouco mais de 20 mil habitantes, todos descendentes de imigrantes italianos. As famílias eram amigas e os casamentos eram entre amigos de muitas gerações.
Nossa família era bem grande, oito irmãos e a casa sempre cheia de tios, primos e amigos, misturando português com italiano aos gritos. Às vezes não entendo como a gente se entendia.
O que era especial lá em casa era o carinho de todos com todos: filhos, sobrinhos, primos, cunhados, amigos, empregados, jardineiros, visitas, vendedores, pedintes, todos eram iguais, recebiam a mesma atenção, o mesmo amor, as mesmas repreensões, ninguém tinha privilégios.
Tratamento diferenciado era para apenas uma pessoa, a mais importante, reverenciada, respeitada e a quem todos amavam de uma forma quase inexplicável: vó Dita.
Uma pessoa verdadeiramente especial, a nonna era esposa, avó, mãe, tia, madrinha, amiga, patroa, comadre, professora, cozinheira, jardineira. E sempre com um sorriso meigo, famoso na região.
Sua casa era um lugar mágico nos arredores da cidadezinha, em um sítio quase místico. É quase impossível descrever aquele paraíso. Um gramado extenso e perfeito, liso, sem mato, grama até onde nossos olhos de crianças sonhadoras conseguiam alcançar. Um caminho daquela grama verdinha, cercado de flores coloridas, levava até a casinha mágica.
Tinha galinhas, patos, algumas cabras, uma vaca que dava o leite mais gostoso que já bebi e um porco, todos circulando livremente em um espaço enorme, só deles.
Em volta da casa e se espalhando para os fundos do quintal, árvores frutíferas que ofereciam um banquete para todos, o ano inteiro. Abacate, amora, pitanga, mexerica, ameixa, laranja, limão, maçã, pera, jabuticaba. A gente passava mais tempo em cima das árvores, brincando ou comendo, do que no chão. E na maior árvore do pomar, o pé de ariticum, tinha uma casa de dois andares feita pelo melhor carpinteiro da região, o nonno Sálvio. A casinha tinha cama, mesa, sofá, tapete e varanda! Perdi a conta de quantas vezes dormimos, irmãos e primos, todos enfileirados no tapete e olhando estrelas, lua, meteoros, cometas e tudo o que aparecia no céus e nenhum de nós sabia o que era.
A casa da nonna Dita era linda e aconchegante. Impecavelmente limpa, uma decoração gostosa, todos os móveis feitos pelo nonno Sálvio, com madeira do próprio sítio. Eram tantos quartos que a gente se perdia, todos os netos dormiam lá nos fins de semana, feriados e férias. Uma das ameaças mais aterrorizantes que nossos pais faziam era “se fizer isso, não vai para o sítio” ou “se não fizer aquilo, não vai para a casa da nonna”.
Em cada canto da casa, uma mesinha com um vaso cheio de flores vibrantes e perfumadas, enfeites, quadros com fotos de várias gerações, porta-retratos com sorrisos dos filhos, dos netos, dos bisavós em paisagens italianas.
As cortinas de tecidos finos, transparentes e esvoaçantes, presas em tranças de cetim coloridos, todas feitas pela nonna, deixavam passar o calorzinho do sol e sua luz dourada.
Na sala, um piano tão antigo que nem mesmo a nonna sabia sua origem, passando de mãe para filha havia muitas gerações. Ah, sim, ela era excelente pianista e, durante muitas décadas, foi professora de centenas de moradores da cidade e dos sítios vizinhos. Tocava tão bem que a gente tinha a impressão de que até os pássaros ficavam quietos para ouvir as músicas maravilhosas, enquanto o nonno cochilava na poltrona ao lado do piano.
O lugar preferido por todos nós era a cozinha. Que energia deliciosa! Era enorme, quase do tamanho da sala e tipicamente italiana, com talheres, conchas, colheres de pau e panelas penduradas pelas paredes. O fogão à lenha era o maior que eu já vi em toda a minha vida e todas as delícias que a nonna fazia saíam dali. Pães, bolos, bolachas, doces, compotas e os almoços maravilhosos! Era uma cozinheira de mão cheia e a mesa, para 16 lugares, bem no meio da cozinha, estava sempre cheia, também. Suas massas eram famosas. Macarronada, lasanha, empadão, tortéi de abóbora, sopa de agnolinni, capeletti, nossa! O cheirinho do molho de tomate com manjericão atravessava o sítio, chamando a gente para almoçar. Sentávamos em festa ao redor da mesa, só esperando que a nonna terminasse a prece. Mal a gente terminava de falar “amém”, já tinha um monte de pratos estendidos para as generosas porções que ela servia, sempre sorrindo! Claro, o primeiro prato era sempre para o nonno, com um sorriso meigo, o olhar de admiração e o infalível beijo na testa.
Depois do delicioso almoço, a deliciosa sobremesa: ambrosia, sagu, papo-de-anjo, doce de leite, compota de pêssego, pera, abacaxi, figo, doce de abóbora, cocada mole. Tudo feito no fogão à lenha, cozinhando lentamente durante horas, emprestando um cheiro maravilhoso para a casa inteira.
E de tarde já estava em volta do fogão novamente, fazendo bolinho de chuva, cueca-virada, bolo de laranja, bolachinhas, pão caseiro, requeijão, patê e manteiga para servir com o café mais gostoso do mundo.
Mesmo às voltas com tantas tarefas, a nonna Dita não descuidava da gente, atenta a tudo. Seus ouvidos eram aguçados como os de um cão de guarda e ela era capaz de ouvir sons tão distantes que mais ninguém conseguia escutar. Quando um de nós se machucava, antes de chorar ela já estava chegando com o colo amoroso, o olhar meigo e o sorriso calmante: “Io escutei o barulho do tombo.” Era incrível.
Tudo era perfeito naquela casa, porque o amor da nonna Dita sempre foi o ingrediente principal. Nunca ouvi uma reclamação sair de sua boca, uma repreensão sobre qualquer coisa ou qualquer pessoa, nenhuma queixa, nenhuma briga, nunca deu sequer uma bronca. Apenas sorria e cravava seu olhar de pura meiguice, única didática usada para educar aquela turma toda.
Depois de um dia tão atarefado, ainda orquestrava animadamente o banho dos netos e reunia todos no tapete da sala, esparramados em almofadas fofinhas, para contar uma história linda da Itália, cheia de príncipes, guerreiros, heróis e fantasias.
Quando terminava, uma dúzia de netos sonhadores e sonolentos iam em fila para uma cama macia, com lençóis limpinhos e cheirosos carinhosamente estendidos pela pessoa incansável e amorosa que esperava pacientemente cada um se deitar. Dava um beijo cheio de amor em cada testa e, sorrindo com seu olhar meigo, desejava bons sonhos.
A nonna era uma mulher pequena, magrinha, de aparência frágil e indefesa, mas de uma força incrível. Claro que era amada por, absolutamente, todos que a conheciam mas especialmente pelo nonno Sálvio, que tinha um cuidado quase exagerado com ela. Fazia questão de dar seu braço para que ela segurasse quando caminhavam, afastava a cadeira para ela sentar, ajudava em todas as tarefas da casa, inclusive na cozinha. Nunca se afastava dela por muito tempo e a acompanhava aonde quer que fosse. Não lembro de ter visto a nonna Dita sem ele do seu lado. A atenção, o carinho, o amor, a admiração eram mútuos.
Justamente por isso, sempre busquei esse amor em meus poucos relacionamentos. Casei jovem, também, como todas as mulheres da família, com um homem bom e respeitador, como o nonno Sálvio. E, como a nonna Dita, fui uma esposa dedicada, mãe atenciosa e sempre cuidando de todos com muito amor, como ela.
A família que Nico e eu formamos também é feliz, nossos filhos também viveram em um lar harmonioso, numa casa confortável, gostosa, bem arrumada e decorada. Também coloquei flores nos cantos, retratos nas paredes e amor nas refeições. Mas nunca foi a mesma coisa que a casa da nonna.
Hoje, mais velha, com os filhos adultos e alguns netos, acho que entendi a diferença: eu sempre olhei para a minha família com meus olhos de mãe. Mas a nonna Dita, que nasceu cega, olhava com os olhos do coração.

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Inspiração

Juntei lembranças e sensações da infância e da adolescência com uma inspiração do além.

Sobre a obra

Resolvi escrever num estilo mais simples, com expressões corriqueiras, tentando passar as sensações para as palavras.

Sobre o autor

Sempre gostei de criar histórias, escrever pequenos textos, anotar meus pensamentos, opiniões e percepções. E tenho muita vontade de escrever um livro de crônicas ou contos.

Autor(a): LUCIANE LOPES BRADASCH OSTERNACK ()

APCEF/SC

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